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Uma pergunta

Giorgio Agamben

13/04/2020

Una pregunta [es]

A peste marcou, para a cidade, o início da corrupção...

Ninguém estava mais disposto a perseverar naquilo que antes julgava ser o bem,

porque acreditava que poderia, talvez, morrer antes de alcançá-lo.
Tucídides, A Guerra do Peloponeso, II, 53.

 

Gostaria de compartilhar, com quem quiser, uma pergunta sobre a qual, há mais de um mês, não cesso de refletir. Como foi possível que um país inteiro tenha entrado em colapso ético e político diante de uma doença? As palavras que usei para formular essa pergunta foram, uma por uma, atentamente pensadas. A medida da abdicação aos próprios princípios éticos e políticos é, de fato, muito simples: trata-se de se perguntar qual é o limite além do qual não estamos dispostos a renunciar. Acredito que o leitor que se dará ao trabalho de considerar os seguintes pontos, poderá apenas concordar que – sem se dar conta ou fingindo não se dar conta – a soleira que separa a humanidade da barbárie foi ultrapassada.

1) O primeiro ponto, talvez o mais grave, concerne aos corpos das pessoas mortas. Como pudemos aceitar, unicamente em nome de um risco que não era possível medir, que as pessoas a nós caras e os seres humanos no geral não somente morressem sozinhos, mas que – algo que nunca havia acontecido antes na história, de Antígona a hoje – seus cadáveres fossem queimados sem um funeral?

2) Em seguida, aceitamos sem muitos problemas, apenas em nome de um risco que não era possível medir, limitar nossa liberdade de movimento num grau que nunca havia acontecido antes na história do país, nem mesmo durante as duas guerras mundiais (o toque de recolher durante a guerra estava limitado a certas horas). Consequentemente, unicamente em nome de um risco que não era possível medir, aceitamos suspender, na prática, nossas relações de amizade e de amor, pois o nosso próximo tinha se tornado uma possível fonte de contágio.

3) Isso pôde acontecer – e aqui tocamos a raiz do fenômeno – porque dividimos a unidade da nossa experiência vital, que é sempre inseparavelmente, ao mesmo tempo, corporal e espiritual, numa entidade puramente biológica, por um lado, e numa vida afetiva e cultural, por outro. Ivan Ilitch mostrou, e David Cayley mencionou isso recentemente aqui, as responsabilidades da medicina moderna nessa divisão, a qual é tida como óbvia, mas que é, na verdade, a maior das abstrações. Sei muito bem que tal abstração fora realizada pela ciência moderna, por meio dos dispositivos de reanimação, que podem manter um corpo num estado de pura vida vegetativa.

Mas se essa condição se estende para além dos confins espaciais e temporais que lhe são próprias, como estamos tentando fazer hoje, e se torna uma espécie de princípio de comportamento social, caímos em contradições para as quais não há escapatória. Sei que alguém se apressará em responder que se trata de uma condição limitada no tempo, e que, passada tal condição, tudo voltará a ser como antes. É verdadeiramente singular que seja possível repetir isso, caso não se trate de má-fé, uma vez que as mesmas autoridades que decretaram a emergência não cessam de nos lembrar que, quando a emergência tiver sido superada, teremos que continuar observando as mesmas diretrizes, e que o “distanciamento social”, como foi chamado com um eufemismo significativo, será o novo princípio organizacional da sociedade. E, em todo caso, o que nós aceitamos sofrer, de boa ou má-fé, não poderá ser apagado.

Não posso, a esta altura, uma vez que acusei as responsabilidades de todos nós, não mencionar as responsabilidades, ainda mais graves, daqueles que teriam a tarefa de zelar pela dignidade do homem. Antes de mais nada, a Igreja, que, fazendo-se de serva da ciência, que já se tornou a verdadeira religião do nosso tempo, renegou radicalmente os seus princípios mais essenciais. A Igreja, sob um Papa que se chama Francisco, esqueceu que Francisco abraçava os leprosos. Esqueceu que uma das obras da misericórdia é a de visitar os enfermos. Esqueceu que os mártires ensinam que é necessário estar disposto a sacrificar a vida em vez da fé, e que renunciar ao próximo significa renunciar à fé.

Outra categoria que falhou para com seus próprios deveres é a dos juristas. Estamos, há muito tempo, habituados ao uso insensato dos decretos de urgência, através dos quais, na prática, o poder executivo substituiu o legislativo, abolindo o princípio da separação dos poderes que define a democracia. Mas neste caso, todos os limites foram superados, e se tem a impressão que as palavras do primeiro ministro e do chefe da proteção civil tenham, como se dizia para as do Führer, imediatamente valor de lei. E não está claro como, esgotado o limite de validade temporal dos decretos de urgência, as limitações da liberdade poderão ser mantidos, como se anuncia. Com quais dispositivos jurídicos? Com um estado de exceção permanente? É dever dos juristas verificar que as regras da constituição sejam respeitadas, mas os juristas calam. Quare silete iuristae in munere vestro? Por que estão em silêncio, juristas, diante do que lhes diz concerne?.

Sei que sempre haverá alguém que responderá que o grave sacrifício fora feito em nome dos princípios morais. A estes, gostaria de lembrar que Eichmann, aparentemente de boa-fé, não cansava de repetir que havia feito o que havia feito segundo a própria consciência, para obedecer ao que acreditava serem os preceitos da moral kantiana. Uma norma que afirma que é necessário renunciar ao bem para salvar o bem é tão falsa e contraditória quanto aquela que, para proteger a liberdade, impõe a renúncia à liberdade.

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