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O virus como metáfora

David Joselit

02/06/2020

The virus as a metaphor [en]

"A palavra agora é um vírus. O vírus da gripe pode ter sido outrora uma célula pulmonar saudável. Agora é um organismo parasita que invade e danifica os pulmões. A palavra pode ter sido outrora uma célula neural saudável. Agora é um organismo parasita que invade e danifica o sistema nervoso central. O homem moderno perdeu a opção do silêncio. Tente parar o seu discurso subvocal. Tente alcançar até dez segundos de silêncio interno. Você encontrará um organismo de resistência que o força a falar."1

William S. Burroughs, O Bilhete Que Explodiu

 

Agora é simplesmente um fato — nós sabemos bem disso — que os memes “viralizados” e os vírus biológicos são coagentes. O avanço do novo coronavírus nos Estados Unidos, e em outros lugares, foi possibilitado por uma desinformação que viralizou. Essa é a consequência mortal daquilo que chamamos de fake news. Não é de todo culpa de Donald Trump que a informação nos infecte em lugar de nos informar, mas ele conseguiu algo notável legitimando uma relação com o conhecimento que é viral, e não baseada em evidências. Ele fez isso ao usar o seu poder de presidente dos Estados Unidos para atacar impiedosamente os atores institucionais que autorizam a informação como conhecimento, incluindo jornalistas, cientistas climáticos, juízes e epidemiologistas. Além de difamar o testemunho de qualquer um cujo discurso considere ilegítimo, incluindo pessoas de cor, solicitantes de asilo e refugiados de todos os tipos. Fake news, em outras palavras, instauram uma crise de autorização (crisis of authorization). Será que a “cura” é pior do que a doença, como alguns políticos (inclusive o próprio Trump) sugeriram em relação à devastação econômica causada pelo distanciamento social? Se a cura para a informação que viralizou é autorizar algumas formas de conhecimento como legítimas e outras como ilegítimas, será que isso não contraria as convicções consagradas entre críticos e historiadores da arte de que a expressão cultural progressista deve sempre questionar a autoridade em vez de estabelecê-la? 

Autorizar é distinto de ser autor. O New York Times, por exemplo, autoriza a escrita de todos os que contribuem para suas páginas. Embora a autorização possa ocorrer através de instituições de elite, a exemplo do Times, ela tem grande potencial democrático — na verdade, como uma forma de poder, a autorização é necessariamente comum. Black Lives Matter, por exemplo, reautorizou gravações em vídeo da brutalidade policial, previamente suprimidas ou descartadas como casos isolados, enquanto prova de uma supremacia branca sistêmica. No entanto, tais formas comuns de autorização não se limitam a posições políticas progressistas. Stephen Moore, conselheiro de Trump na força-tarefa econômica do Covid-19 e que ajudou um grupo que organizava protestos contra as ordens de permanência em casa em Wisconsin, teria declarado: “Precisamos ser a Rosa Parks aqui . . . e protestar contra essas injustiças do governo.”2 Ao fazê-lo, ele tentou reautorizar o ativismo de uma heroína afro-americana dos direitos civis em nome de sua própria causa libertária. Se vírus biológicos sequestram células de organismos humanos, ações humanas (sejam elas governamentais, comunitárias ou individuais) buscam controlar formas virais de informação. Isso é possível porque, assim como um vírus orgânico que se move livremente de hospedeiro para hospedeiro, a informação não é mais impedida por qualquer autoridade racional estável. Parece claro que o distanciamento social é mais fácil que o distanciamento informativo.

É razoável dizer que o afrouxamento dos poderes de autorização seja algo bom. As vanguardas têm se dedicado a desautorizar a forma estética e o conteúdo ao longo de toda a sua história: o readymade é apenas o exemplo mais óbvio. Pode até ser possível definir o modernismo como um agonismo de desautorização, cujo fim agonizante está se desenrolando diante de nós nesse mundo de fake news. Independentemente disso, acredito que neste momento o desafio estético mais significativo é a luta pela autorização de imagens — que muitas vezes é entendido incorretamente como política de identidade. Considere-se, por exemplo, a disputa, no campo discursivo, entre teóricos afro-americanos tais como Fred Moten, Saidiya Hartman e Tina Campt. De um lado, temos as estratégias de fuga, cujo objetivo é escapar de estereótipos balcanizados (ou da infecção causada por vírus de informação tóxica). De outro, temos as reivindicações, aparentemente contraditórias, do direito de representar a herança com a qual nos identificamos (ou aquela que nos importa) que surgiu com a controversa inclusão na Bienal de Whitney de 2017 da pintura de Dana Schutz de Emmett Till – o menino negro brutalmente assassinado em 1955 por supostamente flertar com uma mulher branca. 

Essa justaposição indica um duplo vínculo radical — o impulso de escapar das projeções opressivas de identidade coexistindo com a reivindicação dos direitos de representar um legado histórico extremamente doloroso que permanece desconhecido ou mal compreendido por muitos americanos brancos. A complexidade desse duplo vínculo exige estratégias que diferem muito de uma política de identidade simples ou afirmativa. É aí que se torna urgente assumir a autorização como prática — uma luta democrática agonística pelo significado de qualquer imagem particular ou quantum de informação. Artistas tão diferentes quanto Kara Walker e Cameron Rowland, por exemplo, exploram com muito vigor o modo como imagens e objetos se movem para dentro e para fora de diferentes regimes de propriedade. A primeira realçando encontros afetivos com estereótipos degradados que deveriam ser rejeitados por afro-americanos contemporâneos. O segundo explorando o modo como as pessoas podem ser alçadas à categoria de propriedade quando não são mais consideradas humanas. Cada artista reautoriza um discurso que nenhum dos dois inventou. Nesse sentido, o trabalho deles pode ser associado a práticas dedicadas à apropriação e recalibração de imagens existentes, introduzidas na Pop art e que se expandiram bastante após a Pictures Generation. Todas essas práticas estão calcadas em estratégias de reautorização que enfrentam imagens virais de um determinado tempo e lugar. 

O que quero dizer é o seguinte: estamos nesse momento diante de um desafio crítico e ético, além de enfrentarmos uma crise sanitária e econômica de proporções existenciais. Se quisermos acreditar nos efeitos desautorizadores da arte contemporânea como uma capacidade romântica e revolucionária, não devemos também reconhecer que o regime das fake news levou tais estratégias ao seu extremo mais aterrorizante? Proponho que é responsabilidade do cidadão não só desautorizar, mas também reautorizar informações (inclusive imagens) em face do nosso mundo que se tornou viral. O que isso significa para a história e crítica da arte moderna e contemporânea (a cultura visual de modo geral) e como isso reverbera no projeto dessa revista e em seus leitores? Em resposta a essa situação, ofereço duas reflexões ou recomendações sobre método. 

  1. A história social da arte não deveria apenas inserir as obras de arte dentro de uma narrativa de eventos históricos contemporâneos, como se fosse uma moldura dourada. Nem tampouco realizar uma análise literária da crítica contemporânea da obra de arte. Essas abordagens são esclarecedoras, mas elas articulam apenas um único momento na vida da obra, que não é mais significativo do que qualquer outro. Prender uma obra de arte a um único contexto implica reduzi-la a um significado essencial, trans-histórico; o que não deve ser o caso (um estudo historiográfico básico de qualquer “obra-prima” provará isso, ou apenas lembrar da sua última visita à Demoiselles d’Avignon, que não deve ter sido sido exatamente como a anterior). A obra de arte carrega uma cadeia interminável de eventos de apercepção e, como historiadores de arte ou críticos, cometemos sempre uma violência quando atribuímos a ela um único significado, como faz o mercado de arte quando atribui um preço (embora até mesmo os preços flutuem). O ato de criação de uma obra de arte tem muito pouca relação com o modo como ela aparecerá cinquenta anos depois (ou cinco minutos depois, aliás). E se, em vez de atrelarmos obras de arte a um único tempo ou lugar, optarmos por olhar para um ou mais momentos historicamente específicos da “vida” das obras, atestando assim seu engajamento nas disputas de autorização (legitimação) e desautorização (deslegitimização) das imagens? Um exemplo recente e controverso disso seria a montagem feita pelo MoMA de Nova York, que pendurou lado a lado a Demoiselles de Picasso com a American People Series #20: Die (1967) de Faith Ringgold. A opção de pendurar essas duas pinturas juntas foi certamente um gesto anacrônico, e quiçá condescendente, mas gerou um debate intenso e salutar, porque direta e explicitamente autorizou (legitimou) a obra de Faith Ringgold, enquanto obra de uma mulher afro-americana, como um ícone igual ao de Picasso. 

  2. A realidade e o conceito de cânone tornaram-se radioativos depois das intervenções pós-modernas e pós-estruturalistas da década de 1980. Esse foi um momento importante de desautorização, mas passados quase quarenta anos parece ter levado a uma situação em que a história na história da arte moderna e contemporânea foi sendo esvaziada. A predominância do estudo de caso como abordagem acadêmica hegemônica é um indicativo disso. Estudos de caso sugerem e escondem, ao mesmo tempo, uma atmosfera histórica — as lacunas entre os casos expulsam os eventos históricos que poderiam estar ligados a eles (ou demonstrar sua arbitrariedade). O estudo de caso é a estratégia do historiador que abdicou da sua responsabilidade com a história. Estas observações talvez pareçam contradizer o que eu disse acima, mas não se trata disso. O que estou defendendo é que, em primeiro lugar, obras de arte são eventos apropriáveis que continuamente reingressam na história. Em segundo lugar, o trabalho do historiador deve ser autorizar uma narrativa histórica para esses eventos. É bastante significativo que a intervenção pós-moderna tenha demonstrado que nenhuma narrativa histórica isolada possa ser tomada novamente como cânone. Mas isso não significa que a criação de narrativas históricas, assim como a avaliação do seu poder e utilidade relativos, deva ser abandonada. Além disso, acredito que as próprias obras de arte contam uma história, que elas, através de sua forma, revelam a história de como uma determinada configuração de imagens foi autorizada pelo artista através de uma gramática de combinação e execução. Algumas pessoas podem considerar isso formalismo, mas eu chamo de história. 

 

Diante da completa desautorização de informações pela qual passamos, creio que devemos abraçar a capacidade do intelectual de autorizar o conhecimento de uma forma aberta, ética e disponível para o debate franco. Como norma, precisamos autorizar narrativas históricas politicamente engajadas, trabalhar com aliados ativistas para desautorizar estruturas institucionais tóxicas e autorizar (ou reautorizar) aquelas que admiramos. Não estamos fora do vírus como metáfora; cabe a cada um de nós decidir como combatê-lo.

 

1 William S. Burroughs, The Ticket that Exploded (1962; reimpressão, Nova York: Grove Press, 1967), p. 49. 

2 Michael Shear e Sarah Mervosh, “Trump Encourages Protest Against Governors Who Have Imposed Virus Restrictions,” New York Times, 17 de abril de 2020; atualizado em 20 de abril de 2020; acessado online em 24 de abril de 2020: https://www.nytimes.com/2020/04/17/us/politics/trump-coronavirus-governors.html?searchResultPosition=2.  Agradeço a Keisha Knight por de início ter apontado essa analogia para mim.

 

October: https://www.mitpressjournals.org/doi/abs/10.1162/octo_a_00400

 [traducción] Chris Burden / Revisão Luiz Camillo Osorio

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