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Capitalismo, reprodução e quarentena

Silvia Federici

16/04/2020

Capitalismo, reproducción y cuarentena [es]

Nós, como feministas, e os movimentos de mulheres em todo o mundo, há muitíssimos anos repetimos que este sistema não garante nosso futuro, não garante nossa vida. Este sistema está nos matando de muitas formas diferentes, porém conectadas: está nos matando com a agricultura industrializada, com a comida que nos causa diabetes. Em 2019, mais de 4 milhões de pessoas morreram de diabetes no mundo, por esta comida - “fast food” - tão venenosa, além da contaminação das águas, dos pesticidas. Então, as mulheres do mundo, camponesas, indígenas, urbanas, são a linha de frente na luta por uma sociedade diferente. Por uma reprodução que nos dê vida, nos dê futuro, que nos nutra, que não nos mate.

É muito importante dizer que esta pandemia torna muito visível, muito evidente, o que pessoas que são expulsas de sua terra passa a cada dia com a guerra, os despejos, deslocamentos, as desapropriações, com a contaminação do meio ambiente, e a destruição da natureza. Outro exemplo é o aumento do desepero. Hoje (15/04/2020), nos Estados Unidos, estima-se que 20 mil pessoas morreram pelo coronavírus. É terrível, aterrador. Somente no ano passado, 48 mil pessoas cometeram suicídio. Se suicidaram porque esta vida é cada vez mais triste, cada vez mais difícil.

Como sempre, as que mais sofrem são as mulheres. Hoje podemos ver que são as primeiras da fila como trabalhadoras essenciais (enfermeiras, operadoras de caixa em mercados), e também o aumento do trabalho em casa, ao cuidar dos filhos, não deixá-los com medo, protegê-los dessa ameaça.

Tudo isso centraliza e evidencia a importância da reprodução, uma palavra que faz referência a diversas realidades diferentes, porém conectadas. Reprodução é cuidar das crianças, cozinhar, acompanhar os enfermos. E é também o cuidado com a natureza. A agricultura sustentável, onde as mulheres são as primeiras trabalhadoras. Uma agricultura que não acaba em lucro, mas no sustento de sua família. É assim que podem controlar que o que entra em seus corpos não vai matá-lo, e sim nutrí-los. Esta agricultura industrializada tem nos dado o câncer, inúmeras enfermidades que são completamente derivadas de um modelo baseado no lucro. Não é como a pequena agricultura, onde as pessoas têm uma relação muito estreita com a natureza. Esta globalização, esta divisão internacional da produção, baseada no lucro, não tem sentido algum: buscar maçãs que chegam da China ou de milhares de quilômetros.

Assim, podemos ver que a reprodução é o terreno estratégico fundamental para a construção de um futuro, de uma sociedade. Reprodução significa vida, significa futuro. Vivemos em um sistema capitalista que tem como problema fundamental o que o torna insustentável, que sistematicamente é o que se baseia na subordinação da reprodução da vida, de nossa vida, de nosso futuro. Se baseia no lucro individual, no lucro de grandes companhias e corporações. Isso é o capitalismo. Se funda sobre a exploração do trabalho humano e a subordinação de nossa reprodução. Podemos ver que todas as medidas políticas e econômicas tomadas estão de acordo com essa finalidade.

As mulheres já estão nesta luta. Hoje, os movimentos de mulheres são estrategicamente importantes. Podemos ver que a luta é para recuperar a medida mais básica de nossa reprodução, seja a riqueza social que tenhamos produzido, seja a terra, seja o controle sobre a água, sobre as selvas. Criar uma forma de organização. Existem redes de mulheres que já estão se formando para fortalecer laços. Fortalecer não só nossa capacidade de resistência ao Estado, mas também de impor outro tipo de sociedade. Como se diz na Espanha e na América Latina: uma sociedade em que a vida esteja no centro. E também criar formas mais solidárias de reprodução.

Por muitos anos, falamos sobre a política dos comuns com companheiras do mundo todo. Nunca se testemunhou este conceito com tanta clareza. Pensar coletivamente, e não individualmente. Pensar nossa vida cotidiana, nosso trabalho, o futuro. Pensar em tudo isso coletivamente, não como seres isolados. Agora estão tentando nos isolar em nome desta epidemia. Devemos ter muito cuidado. Usarão a epidemia. O medo de morrer, que é muito forte e muito legítimo, será usado para continuar nos isolando e desmantelando nossos protestos.

É importante que comecemos a recuperar do zero o controle de nossa vida e a tomar decisões coletivas. Isso signfica também que parte de nossa luta deve ser a de exigir que o Estado seja parte da recuperação da riqueza social. O Estado deve relocalizar os lugares onde podemos cuidar de nossa saúde. Agora só podemos estar em casa ou em um hospital. Muita gente tem medo de ir ao hospital, porque sabe que podem se infectar. O hospital não é apenas um espaço de cuidado da saúde. É um lugar onde não há insumos, em que os trabalhadores também estão em perigo. Então, a importância de relocalizar, de haver estruturas da comunidade, como tiveram, em algum momento, vários países. Antes do neoliberalismo, haviam pequenas clínicas, lugares onde uma pessoa podia ir se estivesse com problemas de saúde, sem que houvesse a necessidade de ir ao hospital. Nessa estrutura, era possível ter também um controle maior sobre o tipo de cuidado oferecido, o que necessitamos. Era possível estabelecer uma troca entre as pessoas do bairro, da comunidade, com os que trabalhavam nas instituições. Precisamos revitalizar essa estrutura.

Hoje, não é Estado sim ou não.É claro que temos a necessidade de usar estruturas que vêm de insituições, pois não temos alternativa. Uma alternativa é começar a refletir coletivamente sobre o que precisamos, sobre nossa saúde, sobre a comida, o território, sobre todas as situações que afetam nossa vida. Entretanto, relocalizar a agricultura, a saúde. Criar formas de controle coletivo, de tomar decisões e de compreender.

Acredito que é importante refletir sobre a realidade cotidiana antes do coronavírus. E falo, sobretudo, dos Estados Unidos. No período de 2017 e 2018, mais de 60 pessoas morreram por Influenza, e cerca de meio milhão de pessoas morreram de câncer. Milhares e milhares morrem de diabetes. É uma estatística inacreditável. Voltando ao início: é um sistema que cria uma condição permanente de morte. Isso sem falar sobre a guerra: por anos e anos, os Estados Unidos e a Comunidade Europeia, em cumplicidade, estão criando uma situação de guerra permanente que destruiu o Oriente Médio, e agora, o norte da África.

Portanto, como mulheres, e como feministas, vemos que há uma visão particularmente clara da importância da reprodução da vida. De quais são nossas vulnerabilidades e quais são as necessidades que temos. Podemos ver que necessitamos de uma luta muito ampla, que conecte mulheres de áreas urbanas com áreas rurais, para criar novas estruturas, novos laços de solidariedade, novas formas de reprodução. Sempre inspiradas pelo conceito de que a reprodução da vida e a finalidade da sociedade deve ser o bem-estar, o bem-viver, e não o lucro privado.

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