Contaminação por Capital
Violência contra a Terra, violência contra os nossos corpos
Pedro Neves Marques
07/05/2020
A comics letter Mao 2015
O corpo enquanto ambiente e o ambiente enquanto corpo
Em meados da década passada a Women’s Earth Alliance e a Native Youth Sexual Health Network (EUA/Canadá) montaram uma iniciativa com o slogan “Violence on the Land, Violence on our Bodies.” Segundo este lema cosmopolítico indígena, não há qualquer diferença entre um ataque ao corpo da terra e ao corpo dos seus habitantes, entre a saúde do planeta e a saúde dos humanos e não-humanos. Acompanhar a lógica desta frase, na qual a contaminação da terra e a intoxicação dos corpos clama por deixar de ser pensada separadamente, não é coisa fácil; não porque não seja intuitiva, mas porque as suas ramificações levam a uma crítica interseccional e holística do capitalismo, economia, raça, género, tecnociência e ecologia. Que sejam maioritariamente comunidades indígenas a dizê-lo não é de espantar, seja porque o seu entendimento das relações corpo/ambiente nunca foi tão nítido quanto o nosso (falo por mim, branco e moderno, que é onde me insiro) seja mais pragmaticamente porque têm estado na linha da frente das indústrias de extracção e da negligência voluntária do sistema capitalista: os indesejados e desnecessários.
A invenção dos antibióticos modernos em 1909 permitiu uma revolução tão importante para a saúde pública como para o capitalismo tecnocientífico. Passado um século, o uso excessivo de antibióticos está na origem da actual crise de resistência microbial ou bacteriana. Ainda que haja um contexto individualizado desta crise, na qual doentes que tenham tomado mais antibióticos ao longo da vida estão mais vulnerável à ineficiência de antibióticos tradicionais perante novas infecções bacteriológicas, as origens do problema são comprovadamente ambientais. [1] A higienização produtivista de ecossistemas e a limpeza de bactérias mais comuns através da pulverização de antibióticos em monoculturas agrícolas, junto com a sua injecção em animais (gado, bovinos e aves) acumulados e enjaulados, tem aberto o caminho para a ascensão de bactérias mais raras e fortes: os chamados “superbugs”.[2] Estes antibióticos acabam por se infiltrar, com vagar mas definitivamente, nos nossos corpos, bem como de outras espécies, por exemplo através de rações, ao ingerirmos certos produtos. Ao contrário do famoso dizer do gastrónomo Brillet-Savarin, “Diz-me o que comes e dir-te-ei quem és”, na verdade somos também aquilo que a nossa comida comeu. Por outro lado, sabe-se que as bactérias tendem a evoluir e a adaptar-se a agentes anti-bacteriológicos, podendo mesmo transferir lateralmente o seu DNA para outras estirpes de bactérias, tornando-se mais resistentes. Ou seja, apesar de raras terem sido as vezes em que tomei antibióticos na vida, não deixo de ser possível vítima de ineficiência antibiótica ou arriscar ser contaminado por uma super-bactéria ao visitar um hospital, como aconteceu no estado de Nova Iorque em 2019 com o fungo Candida auris. A situação é tal que, após décadas de favorecimento, ou no mínimo cumplicidade, com estas indústrias, até mesmo governos como o dos Estados Unidos e a corrupta Food and Drug Administration declararam luta contra as bactérias multirresistentes. Estima-se que morram cerca de 35 mil pessoas, num total de 2.8 milhões de infecções resistentes a antibióticos, nos Estados Unidos por ano. Como tem sido dito, o problema do COVID-19 não é apenas o vírus em si, mas as consequentes infecções bacteriológicas, pneumológicas e outras de um corpo enfraquecido. Não admira que Trump, apesar da sua profunda estupidez, se troque e chame o COVID-19 de bactéria em vez de vírus.
1. Ver os sites da Center for Disease Control and Prevention nos EUA e da World Health Organization sobre o tema.
2. Para informação geral ver os sites da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura e da World Health Organization dedicados ao tema.
Mudemos por um momento de disciplina, para nos depararmos ainda assim com as mesmas encruzilhadas. Hormonas sintéticas têm sido usadas nos campos da medicina e da agricultura desde a década de 1930. De facto, o estrógenio e a progesterona, essenciais nos processos de sexualização e de género, ou de “masculinização” e “feminização”, são as drogas mais abundantemente usadas na história da medicina. [3] (isto deverá fazer erguer algumas sobrancelhas). A sua administração, muitas vezes experimental e não consensual ou informada, dá-se através de agentes anti-inflamatórios, estimulantes e inibidores hormonais usados em terapias anticancerígenas, tratamentos hormonais de menopausa e de fertilidade, em contraceptivos como a pílula, em interrupções involuntárias da gravidez, entre muitos outros. Historicamente, as mulheres têm sido os maiores alvos deste verdadeiro mercado, dando-se também, crescentemente, o caso da comunidade trans, sujeita aos danos colaterais e de longo prazo das terapias hormonais, na sua quase totalidade dominadas pela indústria farmacológica, assumidas durante o processo de transição.[4] A isto juntam-se os disruptores endócrinos: químicos que mimetizam hormonas, sendo assim interpretados e digeridos pelo corpo. Uma herança da revolução petroquímica dos plásticos e solventes industriais, estes químicos ricos em estimulação de anti-estrogénio, androgénio, progesterona e outras atividades tiroidias encontram-se em literalmente tudo: de plásticos a ligas de metais, comida e conservantes, cosméticos e pesticidas. Algumas destas hormonas sintéticas e disruptores endócrinos são de diluição rápida, mas muitos perduram no tempo, disseminando-se pelos esgotos e lençóis freáticos ou por sistemas climáticos (vento, nuvens, chuva). Os seus efeitos tornam irrisórias quaisquer divisões corpo/ambiente, dispersando-se geograficamente e podendo ser herdados transgeracionalmente, de mãe para a criança ou através da perpetuação destas substâncias no tempo muito após a sua proibição, como é o caso do PCB.
3. Jain Lochlann, Malignant: How Cancer Becomes Us (University of California Press, 2013), 131.
4. Esta quase total dependência na farmacêutica Ocidental, em contraponto com potenciais terapias de transição caseiras ou não-monopolísticas, é uma questão que mereceria ser mais levantada, em particular dentro da comunidade LBGTQI+.
Em ambos os casos acima, noções de causalidade linear e até mesmo de proximidade aos vectores de contaminação são postos em causa. A antropóloga Elizabeth Roberts delineia três fases, mais cumulativas do que evolutivas, ou o que ela chama, na esteira de Donna Haraway, de “realidades histórico-materiais e situadas” de exposição e contaminação ambiental.[5] Primeiro, “exposição permeável”, protagonizada pelo pânico para com o exterior tóxico da Revolução Industrial, uma hipocondria simultaneamente de saúde e de classe, e a invenção das “manias do primeiro mundo” com a ansiedade das ladies Vitorianas apenas confortada por um interior doméstico e moderno seguro. Dar-se-ia aqui a invenção do “ambiente” — talvez, acrescentaria eu, numa espécie de expansão da lógica moderna da invenção de uma natureza “lá fora”, como escreveu a historiadora das ciências Carolyn Merchant.[6] Segundo, “exposição particularizada”, com a saída de agentes atomizados, empreendedores e racionais, sempre masculinos, para um exterior entretanto sistematizado, repleto de sistemas de circulação/contaminação, dos correios à aviação comercial. Aqui, tal como os agentes ou vectores, a exposição tóxica torna-se também ela particularizada, passível de ser quantificada medicamente na sua circunscrição. Por fim, “exposição antropocénica”, generalizada e sem distinção entre corpos e agentes. Esta é hoje protagonizada pela realidade epigenética (o impacto de elementos xenobióticos e extragenéticos, sejam estes ambientais ou sociais, na saúde e na expressão, em vez da sequência, de DNA) e a toxicidade carcinogénica, hormonal e neurológica como consequência da emergência climática e ecológica, das ruínas tóxicas da indústria moderna (desde o chumbo acumulado em mundanas tintas de parede ou canalizações ao “fallout” radiativo de Fukushima ou Chernobyl) ou dos açucares artificiais e colorantes na comida industrial.
5. Elizabeth F. S. Roberts, “Exposure” em “Lexicon for an Anthropocene Yet Unseen”, Society for Cultural Anthropology, 2017.
6. Carolyn Merchant, The Death of Nature: Women, Ecology, and the Scientific Revolution (São Francisco; Harper, 1980).
O que importa aqui e agora reforçar é a evolução e constituição da ideia de “ambiente” não apenas no seu entrelaçamento com o capitalismo, mas também com diferentes noções de contaminação. Ao ler Roberts, não consigo deixar de me perguntar se essas noções de contaminação e contágio não serão, de facto, anteriores a qualquer conceptualização moderna de “ambiente”. Ao assumir como casa de partida a noção de contaminação em vez de uma imagem pristina do ambiente arriscamo-nos, certo, a reacordar fantasmas metafóricos que lêem a imunologia militarmente, seja em termos de inimizade Schmittiana ou, como alertou Susan Sontag, da doença como invasão de um corpo coeso. No entanto, esta perspectiva indica também uma porosidade vital entre corpos, um entrelaçamento a ser mobilizado politicamente dentro de uma ecologia queer e multiespécies.[7] Afinal de contas porque há de ser o contágio considerado mau?
7. As consequências desta exposição generalizada são geralmente caracterizadas como tanatológicas, o que está correto dada a sua correlação com cancros e doenças do sistema nervoso e neurológico. Por outro lado, não posso deixar de fazer uma reserva e acrescentar que também outras formulações vitais estão a irromper desta contaminação ambiental, em particular no que toca aos impactos destas hormonas e disruptores na sexualização e nos efeitos “queer” e não-normativos de formas de vida e das inter-relações. O mesmo sobre encarar condições, como hiperatividade e défice de atenção, como qualidades/realidades em vez de problemas/doenças. Sobre o tema ver: Malin Ah-King e Eva Hayward, “Toxic Sexes: Perverting Pollution and Queering Hormone Disruption” em Technosphere Magazine (Berlim; HKW, 2019).
Option Paralysis Mao 2016
Um atraso entre tecnociência e epistemologia: entre o vírus e a privatização da vida
Encaremos então o presente drama colectivo que é a pandemia do COVID-19. Como foi já apontado, a expansão da indústria pecuniária e agrícola tem aberto caminho vorazmente para nichos ecológicos, como florestas — ou no caso da indústria mineradora e petroquímica para os oceanos –, libertando assim novos patogénicos. Ou como no tão falado, e demonizado deva-se acrescentar, caso dos mercados de animais selvagens chineses, a completa expropriação e abandono de pequenos trabalhadores pelo Estado, impelindo-os a trabalhar nesses mercados “extremos” e de outro modo desnecessários. Mercados que, depois, será o próprio Estado a fomentar e regular segundo as suas necessidades económicas.[8]
8. “Des chauve-souris et des hommes: politiques épidémiques et coronavirus”, entrevista com Frédérick Keck, Lundi Matin, Março de 2020.
O caso lembra-me conversas que tive com fazendeiros no sul do Brasil. Não desmentido o facto, claríssimo, de que a comunidade de fazendeiros brasileira e em particular a Banca do Gado é, em conluio com o próprio Estado, responsável pelo imenso genocídio, humano e não-humano, a que se assiste no Brasil, deve também ser dito que muitos fazendeiros se vêm presos num ciclo vicioso no qual têm um único fornecedor de sementes (monopólio) e um único comprador (monopsónio), isto quando estes não são exactamente a mesma multinacional big pharma. Lembro-me bem da condenação generalizada por órgãos oficiais e nas redes sociais dos últimos grandes incêndios florestais na Amazónia, já sob o governo Bolsonarista. Como se os capacetes azuis da ONU pudessem simplesmente tomar o controlo da Amazónia e prender garimpeiros e incendiários, e como se estes homens e mulheres fossem inerentemente vis e contra a floresta e não meros peões, também eles descartáveis, do capital local e internacional. Uma tal condenação está muito próxima da acusação de “deplorables” feita pela então candidata presidencial Hillary Clinton ao interior branco “White Trash” norte-americano, como se os empregados do Walmart ou os mineiros das minas de carvão reabertas por Trump fossem uns primitivos, antepassados e restos de uma civilização entretanto liberalizada, limitados meramente à sua capacidade de resposta em forma de violência armada e genocida. Não pretendo de maneira alguma desculpar estas comunidades do seu racismo, homofobia e militarismo, mas como bem escreveu Godofredo Pereira num recente artigo contra a tecnocracia do arquitecto e sociólogo Benjamin Bratton, relembrando a surpresa e condenação colectiva perante tais mega-incêndios, “e se, em vez de enviar militares para a floresta amazónica, estes fossem enviados para as sedes da Amazon.com em Seattle ou de instituições financeiras pelo mundo fora, garantindo que o comum planetário não seja reduzido a mercadoria? Porque será que Bratton considera proteger o mundo das pessoas que vivem do desmatamento, em vez de perseguir aqueles que lucram do desmatamento?” [9] O mesmo com trabalhadores chineses empurrados para as fronteiras da extracção, presos entre a consolidação de um Estado Chinês globalizado e a dramatização de biomas sob o peso das mudanças climáticas, como a crescente desertificação do deserto do Gobi que tive a oportunidade de visitar recentemente.
9. Godofredo Pereira, “How Technocrats Learned to Stop Worrying and Love the Quarantine” na plataforma KIM da HfG Karlsruhe, Abril de 2020. Tradução minha.
Compreender o vírus com que nos debatemos hoje é entrar numa lógica não particularizada ou atomizada de agenciação. O vírus não existe por si só. O vírus é tanto um parasita, favorecendo-se dos caminhos abertos pelo capital, a emergência climática e a tecnociência, como parasitado por toda a espécie de culturas humanas e não-humanas, incluindo nichos ecológicos, forçadas sobre este. Tal como o vírus, também o “corpo”, o “ambiente” e a violência entre um e outro se definem nas intersecções entre tecnociência e capitalismo, sob que forma seja, isto porque o capitalismo, independentemente da sua escala local ou globalizada, é sempre extractivista. Só nestas inter-relações se pode pensar uma estratégia que evite a repetição de futuros SARS ou outros agentes patogénicos, porque a realidade é que tal como a alteração do clima global, aliás, por consequência deste, as pandemias serão o novo normal. A epidemia do SARS deu-se em 2003, a gripe H1N1 em 2009. Porque não pensar estas vagas epidémicas junto com os ciclos, também estes com hiatos progressivamente menores, de “destruição criativa” do capital financeiro, para usar expressão do economista Joseph Schumpeter? Que o COVID-19 nos sirva pelo menos para isso.
Num recente artigo sobre a pandemia atual e “a inscrição plena [dos serviços sociais de saúde] no sistema financeiro global, enquanto funções essenciais do seu negócio”, Pedro Levi Bismarck relembra o esforço feito pelos Estados financeirizados em manter uma epistemologia imunológica global no terreno da exposição particularizada que referi acima. Nas suas palavras: “Se há algo que esta epidemia tem revelado de forma paradigmática é a extensão absoluta desse princípio da privatização da vida, da privatização do corpo, que o capitalismo e o neoliberalismo levam hoje até às últimas consequências: a conversão da vida, em todos os seus gestos, em todas as suas funções, em todas as suas necessidades básicas, vitais e fundamentais, numa função da rentabilidade do capital financeiro.” Ou mais sucinta e brilhantemente, “O princípio da imunização individual é apenas um efeito da privatização do corpo.” [10]
10. Pedro Levi Bismarck, “Uma Vida Privada: Pandemia e Capitalismo”, em Revista Punkto, Abril de 2020.
Talvez aqui o mais intrigante seja o modo como esta particularização financeirizada e essa imunização individual sigam em contramão com a consciência, inclusive e acima de tudo da própria tecnociência hipermoderna, de que a realidade do ambiente e dos corpos se tornou entretanto porosa, coletiva e transgeracional; o que na antropologia e estudos da ciência e tecnologia se tem chamado de embodied ecologies: “um modelo conceptual para descrever a fluidez entre corpos e mundos que salientam relações em vez de entidades delimitadas.”[11] Ou, na esteira da antropóloga Janelle Lamoureaux: o corpo enquanto ambiente e o ambiente enquanto corpo.[12] Isto não deixa de ser curioso porque são os próprios avanços e tecnologias de ponta da tecnociência, em particular na epigenética, os primeiros a impor uma desconstrução crítica, e até mesmo ontológica, do capital. Maior é a estupefacção quando percebemos que esta contradição não dilui ou diminui a financeirização dessa mesma tecnociência. Por outras palavras, entre o investimento de capital, as práticas tecnocientíficas e as suas conclusões, lidamos hoje com um um “lag”, um atraso, entre tecnociência e epistemologia.
11. Andrea Ford, “Introduction: Embodied Ecologies” em Cultural Anthropology, Abril 2019.
12. Ver Janelle Lamoureaux, “What if the Environment is a Person? Lineages of Epigenetic Science in a Toxic China” em Cultural Anthropology, Maio 2016.
Epigenética enquanto metáfora
No seu livro On Immunology, Eula Biss lembra como Rachel Carson não usou o termo “ecossistema” no seu icónico Silent Spring; Carson usa “web of life”.[13] Carson continua hoje relevante pela condenação do uso ambiental de petroquímicos, e até mesmo por contextualizar a exposição tóxica como uma nova forma e fase da dizimação das Américas Indígenas pelos Europeus. Carson permanece incontornável por nos ter enviado simultaneamente de volta às discussões tecnocientíficas sobre variolação e inoculação (conhecimento muitas vezes roubado ou suprimido às populações subalternas nas colónias e às “bruxas” na Europa, como foi já escrito por inúmeras historiadoras feministas das ciências) e em frente para os nossos actuais ambientes epigenéticos. Esta análise implica por necessidade antropologia — não uma antropologia centrada simplesmente no “antropos”, mas numa antropologia para lá do humano, multi-espécies e da própria “natureza”, ou para ser mais correto, naturezas no plural.[14]
13. Eula Biss, On Immunology: An Innoculation (Graywolf Press, 2015) 43.
14. Ver as obras dos antropólogos Eduardo Kohn, Eben Kirksey, Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro, respetivamente.
Olhando para a epigenética e os impactos endocrinológicos de um mundo contaminado, não é difícil ver como a invenção moderna de uma natureza “lá fora” é duplicada e resignificada na divisão entre o interior e exterior do corpo, com órgãos como a pele, os olhos, os pulmões e os genitais como pontos de entrada. Tal como a cultura foi durante séculos imaginada como separada e acima da natureza, o corpo permanece hoje fortificado. A endocrinologia e a genética são duas áreas onde esta divisão é mais visível, ainda que ambas, na sua prática, como referi, rompam com essa mesma divisão. Na esteira de Bruno Latour, estas exigem que pensemos e sigamos as relações horizontalmente, como se num plano geográfico de distância e proximidade, mas também multidimensionalmente, através das diferentes escalas (macro e micro) dos ambientes/corpos (por exemplo, o sistema digestivo e intestinal como multi-espécie) e, sem esquecer, trans-temporalmente.
A epigenética é uma ciência orientada ao futuro, aberta ao legado de uma intoxicação passada e presente nas gerações futuras; as suas cascadas tróficas reveladas pelo constrangimento (na forma de doença ou condições crónicas) ou libertação (através de imunização) de corpos futuros. Entre contaminação ambiental e culpabilização individual, historicamente o capital, imbuído de uma moral neoliberal e protestante, tem optado pela última, isto é, a responsibilização dos nossos hábitos de consumo (os fumadores em vez das tabaqueiras ou os maus hábitos alimentícios em vez da sua industrialização monopolística), apenas cedendo sobre grande pressão do jornalismo de investigação e do ativismo. Não seria de esperar outra coisa senão essa negação das ramificações da financeirização no ambiente/corpo, ou a ofuscação dos circuitos e das dependências do capital na gestão da “doença”. O mesmo com esses tais (longínquos e outros) vendedores e consumidores de carne de animais selvagens que estariam na origem da pandemia do vírus COVID-19, ou melhor, da sua libertação de um nicho outrora inofensivo ou da sua dormência no interior de uma espécie (pangolins, morcegos, macacos) supostamente em nada relacionada connosco.
Não é, portanto, de surpreender que, condicionados pela insistência socioeconómica na particularização do corpo, activistas quer à Direita reaccionária quer à Esquerda ecológica, unidos por uma ideia de conservadorismo (económico no caso dos primeiros; “natural” no caso dos últimos), joguem frequentemente as culpas nos corpos reprodutivos, sejam estes de mulheres cis, de homens trans, ou de pessoas não-binárias. Quem fuma, quem bebe, quem stressa em demasia, quem não sabe proteger o seu bebé. Aliás se sublinho aqui esta fluidez de corpos reprodutivos, sublinhando a comunidade trans, é porque esta poderá eventualmente ser fácil e exemplarmente responsabilizada por essas futuras consequências, no seu caso devido aos potenciais impactos transgeracionais das terapias hormonais. Se por um lado, à Direita se prevê uma culpabilização do corpo trans na salvaguarda da sua descendência, do ponto de vista da financeirização do corpo imunológico quaisquer futuros tratamentos ou terapias não serão mais do que uma expansão de mercado. Neste caso, o corpo trans torna-se duplamente vítima de um bode expiatório que subentende uma visão normativa dos corpos, da sexualização e do género: por um lado, consequência bio-patológica da disseminação poluente de disruptores endócrinos e hormonais nos ecossistemas; por outro, responsáveis pela “poluição” das gerações futuras.[15]
15. Entre outros, ver Anne Pollock, “Queering Endocrine Disruption” em Object-Oriented Feminism (Mineápolis; University of Minnesota Press, 2016); “Swimming in Poison: Reimagining Endocrine Disruption Through China’s Environmental Hormones” em Cross-Currents: East Asian and Cultural Review, 30 (2019); e Malin Ah-King e Eva Hayward, “Toxic Sexes: Perverting Pollution and Queering Hormone Disruption” (2019).
A epigenética e endocrinologia podem ser entendidas como tecnociências de intensificação quer social quer física dos corpos/ambientes, caracterizadas pela gestão das capacidades de exposição tóxica da vida (body burdens). Se por um lado estas se inserem perfeitamente nos actuais sistemas de biopoder, por outro elas explodem com os parâmetros ideológicos e epistemológicos deste. É precisamente por existirem nesse paradoxo que estas são tecnociências abertas à sua cooptação libertina-política, como escreveu Paul Preciado, num já incontornável testemunho experiencial do papel das hormonas como zonas de conflito: cientifico, social, de género, etc.[16] Similarmente, um bom princípio de corrupção seria dar um passo em frente, ou paralelo, e ver na multiplicidade antropológica uma estratégia de cooptação do fazer da ciência. Na esteira da antropóloga indígena Kim Tallbear ou de César Geraldo Herrera, como podem diferentes cosmovisões e acordos entre natureza e cultura iluminar, distorcer e reinterpretar conhecimento tecnocientífico sobre entidades liminares como genes, hormonas e disruptores endócrinos no sentido de uma epigenética cosmopolítica? [17]
16. Paul B. Preciado, Testo Junkie: Sex, Drugs and Biopolitics in the Pharmacopornographic Era (Nova Iorque; The Feminist Press, 2013).
17. Kim Tallbear, Native American DNA: Chemical Belonging and the False Promise of Genetic Science (Mineápolis; Minnesota University Press, 2013). César Geraldo Herrera, Microbes and Other Shamanic Beings (Oxford; Palgrave Macmillan, 2018).
Contra uma lógica imunológica assente na divisão imaginária entre um exterior e interior do corpo, ou em termos Schmittianos de colaboradores e inimigos, nações contra nações, grupos identitários contra grupos identitários, indivíduos contra indivíduos, átomos contra átomos, como pensar epigeneticamente? Não tenho particular apreço por metáforas, mas ainda assim esta parece-me uma metáfora mais eficaz e combativa para os nossos tempos.