Coronavírus, a fase atual e o futuro [1]
Entrevista para radio Onda d'Urto
Toni Negri
21/03/2020
Coronavírus, a fase atual e o futuro pdf [pt]
Coronavírus, la fase attuale e il futuro [it]
Onda d'Urto – Como você vê a situação da pandemia do coronavírus? Ela está expondo as políticas neoliberais e as ambiguidades do capitalismo, ou seria simplificar demais dizer isso?
Toni Negri – Bem, não sei se é simples ou complexo, de todo modo me parece que seja verdadeiro. O neoliberalismo tinha colocado um manto de força violentíssima sobre o desenvolvimento econômico e político dos nossos países. Havia esse manto financeiro completamente comandado, controlado até nos mínimos detalhes, que seguia uma estrutura de produção e de reprodução cada vez maior e mais complexa, constituída
tanto por elementos naturais quanto por elementos produtivos, ou seja, duas vezes naturais. Hoje, a relação dessa concha de controle financeiro com a outra concha de relações entre os homens, ou seja, de produção, de inter-relação produtiva entre as pessoas e a natureza, quebrou-se. Esta é uma crise na qual os mecanismos de sociabilidade e de produção – de produção de riqueza e também de vida, de vida natural – são obstruídos. As relações capitalistas que pretendiam cobrir isso passam a ser reconhecidas como impeditivas ao desenvolvimento real. E acredito que isso seja muito importante. A declaração de Ursula Von der Leyen[2], que agora diz que “a economia real que se movimente sozinha”, que “não a seguiremos”, parece uma coisa absolutamente assustadora, por um lado, e explosiva, por outro. Assustadora, porque ela reconhece que a situação como estava não podia mais ser contida. Explosiva, porque dá espaços efetivos de resposta e de construção de novos programas. Programas do comum, espero.
Ficou claro que o neoliberalismo chegou num ponto de crise, que deriva dessa coisa estranha que é um vírus mortal. Não há muito o que dizer, não é algo como uma gripe. Aliás, antes fosse! É um vírus mortal, que ataca tudo, que determina emergências desconhecidas e imprevistas de todos os pontos de vista. No entanto, toda essa crise da
capacidade neoliberal pode ser observada também a partir de outras coisas, por exemplo a continuidade de lutas contra o neoliberalismo, que na França e na Inglaterra foram de uma violência inimaginável. Para lá do terror que Macron tem de que as coisas se repitam como na Itália, ele fica apreensivo em relação às lutas regionais e sindicais, que
o colocaram numa situação insustentável. Tanto que ele vetou a lei das aposentadorias recentemente. Por trás dos pacotes de acordos entre estados para reprimir as lutas, existem lutas realmente presentes, luta que também na Itália, de acordo com o que me dizem, foram bem fortes nas fábricas, nos circuitos de empresas como a Amazon etc. Aqui na França, vemos o momento atual realmente como o limite das políticas neoliberais, tanto em relação à natureza, à poluição, a tudo aquilo que está por trás dessa pandemia, quanto em relação ao ataque à reprodução, ao comum, àquele comum que entendemos como construção da saúde, da educação etc., e que é o comum que nós valorizamos acima de tudo e que queremos reproduzir o mais amplamente possível. Esse ataque foi feroz e, no entanto, hoje vive uma pausa. Abre-se um caminho pelo qual é preciso que entremos, em luta.
Voltaremos logo à questão das lutas. Você primeiro citou Von der Leyen: a União Europeia neste momento, que diz não ter um mandato para se ocupar da saúde no âmbito continental, está se arriscando, com essa crise social, econômica, sanitária, a desabar politicamente?
A decisão que tomaram está certa. Quando se fala de Europa não se fala simplesmente da unidade política, mas se fala do Banco, se fala da moeda. Então a reabertura das torneiras foi bem-vinda e necessária. E neste momento, a luta contra o Covid-19 pode ser bem mais forte no campo geral, sejam quais forem as separações em relação aos métodos e em relação às formas de intervenção. O que é certo é que o Coronavírus chega com uma inevitabilidade terrível, se acompanhamos de Paris o que acontece na Itália, como tenho feito. Aqui, depois de alguns dias, vejo a situação tal e qual estava acontecendo na Itália.
A Europa não tem um sistema de saúde comum, mas tem problemas comuns. Uma das coisas que todos pudemos aprender é quantos respiradores
há na Alemanha, na França e na Itália. E descobre-se que a Itália tem mais respiradores do que a França, por exemplo. Ninguém esperava que o sistema de saúde italiano fosse mais desenvolvido do que o francês. Você se dá conta de que, nesse âmbito, essas coisas existem. Também de que a União Europeia tem armas formidáveis para enfrentar essas coisas. E depois, o que acontecerá quando esta peste acabar? Acontecerá que a Europa conseguirá unir-se novamente. Espero que a Europa consiga mover-se junta a partir da base que é o seu impulso unitário efetivo, a Europa central, para dizer claramente, Alemanha, França, Itália, Espanha. Espero que tudo isso possa acontecer identificando e desenvolvendo aquelas que são as melhores energias que foram criadas neste período.
Até aqui, vejo que o mundo se dividiu em relação ao modo como enfrentar esse contágio: por um lado, o método malthusiano, darwiniano, que é típico de Trump e de Johnson. Por outro lado, o método europeu, que se funda essencialmente na sustentação do sistema público de tratamento e de prevenção. Se esse sistema resistir, acho que pode se
tornar um modelo. É o mesmo sistema usado na China, desse ponto de vista. A coisa torna-se extremamente interessante também globalmente, uma vez que as relações atlânticas já foram tão corrompidas e maltratadas pela política de Trump. Esta é uma das muitas aberturas que essa crise determina, às quais será preciso dar atenção extrema. Sobretudo por parte das inúmeras pessoas que não querem mais repetir o passado, que querem usar essa ruptura para sair dela de maneira renovada – não sei se a coisa é já completamente consciente, mas logo será. O que é absolutamente necessário agora é fazer um discurso de massa, um discurso amplo, que não repita de modo algum formas estúpidas de extremismo, incluindo aquele catastrófico: “Estamos à beira da catástrofe, vejam até onde foi o capitalismo...” Cuidado com esses discursos! Ao contrário, procuremos entender que a crise é interna e necessária ao capital, e é nesse momento de crise que devemos intervir.
Justamente sobre esse assunto, muitas vezes são feitas análises sobre a crueldade do capital no lugar de organizar e reproduzir momentos de luta. Também pelo que você disse: o âmbito europeu, além daquele dos movimentos locais, poderia ser aquele em que se abre um discurso sobre a saúde pública, sobre o Estado de bem-estar social, sobre a redistribuição de riquezas? Necessário, provavelmente, para que a crise não tenha uma saída como a de 2008.
Acredito que uma saída como a de 2008 é impossível, porque a crise de 2008 foi financeira. Esta é uma crise real. Em 2008 as fábricas foram induzidas a produzir menos porque as finanças não respondiam. Os mecanismos financeiros é que foram interrompidos. Agora estaremos em uma situação na qual as pessoas continuam a requisitar mercadorias, mas as fábricas não conseguem mais produzir. Será esse o grande problema que encontraremos pela frente. E aqui há de fato a possibilidade de fazer com que as fábricas produzam de uma forma diferente, e produzam outras coisas; de introduzir assim todo um discurso sobre a reprodução social. Nós devemos nos apropriar da reprodução social do comum. Eu diria que estas são as “palavras de ordem” que emergem dessa crise: reapropriação da reprodução. Devemos aproveitar as palavras de ordem que vêm das lutas das mulheres e das grandes lutas de vanguarda – desculpem essa palavra antiquíssima –, que foram lutas de promoção, bem como de lutas como a dos gilets jaunes [coletes amarelos] na França. São lutas pelo comum, nas quais há um altíssimo conteúdo democrático acoplado a um altíssimo conteúdo de reforma anticapitalista. Hoje, somos capazes de falar disso coletivamente, e de falar no âmbito das massas – não mais nos dirigindo a industriais poderosos para pedir o favor ou a caridade de nos movimentarmos nesse campo, não mais nos movimentando no campo keynesiano, mas num campo de reconstrução de tecidos comuns da reprodução.
Se você reparar, o que está acontecendo nestes tempos de comunicação outra, de comunicação por meio de Skype ou telemática, são fenômenos muito interessantes do ponto de vista de transformação da comunicação interindividual e da comunicação coletiva. Estamos aprendendo o que quer dizer transmitir sentimentos, afetos, alegria de viver, necessidade de produzir, do campo individual ao campo coletivo. Essa é uma coisa extremamente importante que está acontecendo apesar de tudo, apesar desta situação de miséria em que nos encontramos. Está acontecendo, e vamos ter que retomar isso nas lutas.
Essa situação estranha que você descreveu, a necessidade de conversar por meio da tecnologia e a impossibilidade de nos vermos, junto da necessidade de serem criadas linhas de luta e de organização, poderia também ser uma oportunidade para formular modos de luta que rompam com o passado?
Espero que sim, mas eu sou um velhinho, já tenho 87 anos. A minha memória é de lutas lado a lado [3], tocávamos os cotovelos não para nos cumprimentarmos, mas para nos darmos força, para nos unirmos. Era essa a corporeidade das lutas. Foi um elemento tão fundamental que para mim é difícil pensar em inventar algo diferente, mas estou convencido de que a abstração marxista do trabalho, a abstração marxista da comunidade, pode tornar-se um elemento central nas lutas do general intellect, ou seja, nas lutas que se constroem no campo da comunicação. De um ponto de vista teórico, tenho certeza de que isso pode funcionar. Reservo-me o defeito, em função da minha idade, de não ver as coisas assim. Alguns amigos e companheiros de 20 anos, millennials, me dizem que hoje as lutas acontecem de outras formas. Tudo bem, eu estarei nelas atrás e não na frente, mas sem dúvida estarei.
Na Itália, vimos, diante da obsessão do governo, inclusive diante das necessárias medidas de paralisação para prevenir o crescimento do Coronavírus, favorecida a abertura de fábricas e dos vários polos de logística, bem como o trabalho de entregadores por delivery e as finanças. No entanto, esse esquema foi colocado
fortemente em questão pelas greves espontâneas que ocorreram nas fábricas, revelando com consistência como a medida da greve pode ser incrivelmente atual, ainda que em meio à emergência e à crise. Você está de acordo e acha que essas greves também poderiam ser uma ruptura com o passado?
Estou totalmente convencido de que sim. A crise ocorre no campo da produção, não somente na fábrica, mas na sociedade produtiva, na circulação e, principalmente, na reprodução. Isto é importante, pois são dados que, do ponto de vista estatístico, apenas recentemente começam a aparecer. Nesse campo, a luta é absolutamente central e a forma da greve é com certeza fundamental, como sempre foi. Se nosso objetivo é reconstruir, a greve não é simplesmente algo destituinte, que desestabiliza ou desestrutura. Junto à desestabilização ou à desestruturação, precisamos também da ideia de como construir. E a ideia de construção, na estrutura produtiva, se dá através da comunicação, através do tornar comum. Não basta reapropriar-se do fluxos produtivos. Não basta reapropriar-se dos fluxos reprodutivos [4]. É preciso também torná-los parte do comum.
As mulheres sabem disso muito bem. Sabem muito bem que o problema não é simplesmente se libertar ou fazer filhos livremente. O problema é construir formas de comunidade nas quais as crianças possam ser educadas, os filhos possam crescer, e as mulheres possam se libertar. Libertar-se e construir é a mesma coisa. Isto é falar dos tempos atuais. O que é a greve? É uma ruptura do sistema de produção que usa uma obstrução objetiva. Mas as máquinas neocapitalistas são máquinas de merda, que fecham os fluxos também de desejo. Portanto, uma vez enfraquecidas essas máquinas,
é preciso recuperar o desejo de estar junto, o desejo de produzir. Não há decrescimento depois disso, há um crescimento diferente, outro. Não voltamos. Exatamente como na ecologia, não voltamos a viver na floresta, mas conseguimos viver com a floresta.
Nota
1 – Entrevista realizada em 21 de março de 2020, pela rádio Ondad’Urto. O tradutor propôs esta publicação.
2 – [Nota do tradutor] Von der Leyen é presidente da Comissão Europeia. Em 20 de março de 2020, um dia antes da entrevista que aqui traduzimos, fez uma declaração oficial anunciando mais flexibilidade diante das regras econômicas a que os países membros da Zona Euro estão sujeitos. A “cláusula geral de salvaguarda”, acionada pela primeira vez na história, possibilita temporariamente ajudas estatais para empresas que corram o risco de fechar com a pandemia do Coronavírus, e introduz um fundo europeu para lidar com os prejuízos do Covid-19.
3 – [N.t.] Gomito a gomito, literalmente, em italiano, “cotovelo a cotovelo”.
4 – [N.t.] Optamos por manter estas duas frases, muito parecidas, tal como está na entrevista.
Onda d'Urto https://tinyurl.com/entrevistanegri
chão da feira https://chaodafeira.com/catalogo/caderno101/
Bernardo RB [tradução]
Fernanda Regaldo [revisão da tradução]
Clara Delgado [revisão]