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Pela socialização do aparato de saúde

Alain Bihr

18/03/2020

COVID-19. Pour une socialisation de l’appareil sanitaire (le cas de la France) [fr]

A situação criada pela pandemia de Covid-19 é uma demonstra- ção real e irrefutável da falência da tese defendida durante décadas pelos defensores da abertura do sistema de saúde. O seu postulado básico: todos têm um “capital de saúde” do qual são o principal, se não o único, responsável (cabe a eles preservá-lo e, melhor ainda, valorizá-lo – melhorá-lo), tem sido desmentido nas últimas semanas numa escala planetária [1].

Tanto a propagação do vírus responsável por esta pandemia como as medidas desigualmente eficazes tomadas pelos Estados para proteger as suas populações provam, se necessário, que a saúde é, antes de mais nada, um bem público: que o estado saudável ou mórbido do corpo de cada pessoa depende em primeiro lugar do estado saudável ou mórbido do corpo social, do qual o primeiro é dependente ou um simples apêndice, e da capacidade ou não do referido corpo social se defender, por si ou através das suas institui- ções políticas, contra fatores patogênicos, em particular desenvol- vendo um sistema de assistência social eficiente e uma política de saúde pública que proporcione ao segundo os meios necessários e suficientes (humanos, materiais, financeiros).

Eu objetaria que a situação criada por esta pandemia é verdadeira- mente excepcional e que, portanto, seria errado ou pelo menos aven- tureiro tentar tirar conclusões gerais a partir dela.

 

Mas o argumento pode ser facilmente revertido. Pelo seu caráter extraordinário, pelo fato de ser um fator patogênico que ameaça rápida e maciçamente toda a população, a excepção pode, pelo contrário, confirmar a regra no sentido mais elementar do termo: fazê-la aparecer enquanto que as condições normais tendem, pelo contrário, a escondê-la. O que esta pandemia nos lembra, mais do que nos ensina, é o que mui- tos outros estudos epidemiológicos anteriores nos ensinaram nas décadas anteriores, e que foram negligenciados por aqueles que a deveriam ter levado em conta em primeiro lugar, os irresponsáveis que nos governam: o tributo pago anualmente pelos trabalhadores devido as condições de trabalho perigosas, insalubres e desgastantes, por doenças crônicas ou graves e anos de expectativa de vida [2]; o tributo pago não menos regularmente pelas populações humanas, particularmente urbanas, devido a múltiplas formas de poluição (ar, água, etc.), geradas pelo produtivismo capitalista [3]; o terrível re- corde de décadas de junk food, pelo qual a indústria agro-alimentar capitalista também é responsável [4]; e assim por diante.

E nos lembra da mesma forma – mais uma vez, nada de novo – o que os funcionários do hospital da França, lutando ao longo do ano passado, têm dito repetidamente: que o hospital público é vítima de políticas de estrangulamento financeiro, tornando-o cada vez menos capaz de cumprir as suas tarefas de acolhimento e cuidado dos pacientes; mas que também é vítima de uma medicina liberal da cidade que, em grande parte, vira as costas à sua missão, enviando pacientes para o hospital público que inicialmente estavam sob seus cuidados; enquanto as clínicas privadas prosperam com os excessos de taxas que selecionam uma “clientela” que evita a dupla armadilha anterior. Tanto que, quando o choque de uma pandemia atinge, é todo este sistema, deliberadamente dilapidado, que se revela incapaz de lidar com a situação, forçando os prestadores de cuidados a sepa- rar os pacientes de acordo com a sua expectativa de sobrevivência... e idade. Como os cirurgiões fazem em tempo de guerra nos hospi- tais de campanha, na retaguarda da linha da frente!

O postulado acima mencionado tem sido usado como garantia e justificação de todas estas políticas. Com base na ideia de que cabe a cada pessoa, antes de mais nada, cuidar do seu “capital de saúde”, assumindo a responsabilidade (por exemplo, “escolhendo” se deve ou não controlar o seu estilo de vida) e contratando um se- guro (subscrevendo um seguro de saúde privado de acordo com as suas “escolhas”): É lógico reduzir urgentemente os seguros de saúde públicos, deixar o campo aberto às seguradoras privadas ou mu- tuais, garantindo que sejam devidamente colocadas numa situação de “concorrência livre e sem distorções”, e dar preferência às clíni- cas privadas em detrimento dos hospitais públicos, abrindo assim, duplamente, novos campos para o desenvolvimento do capital. Pois a abertura da oferta deve andar a par com a abertura da procura, como é necessário numa “economia de mercado”.

E é esta mesma premissa que os governos devem agora aban- donar, decretando medidas mais ou menos drásticas para conter a população, numa tentativa de deter a propagação da pandemia e evitar o colapso dos serviços hospitalares, cujas capacidades opera- cionais eles próprios reduziram. Este é o fim da exaltação implícita da liberdade de escolha de cada indivíduo quanto à sua estratégia para desenvolver o seu capital de saúde! Ao confinar cada um nas suas próprias casas e, consequentemente, ao restringir a sua liber- dade de circulação, bem como todas as liberdades públicas em geral, estas autoridades reconhecem implicitamente que a saúde é, acima de tudo, um bem público que precisa de ser preservado como tal. Só que agora não há outra forma de defendê-la senão pondo em risco as nossas liberdades, sem nos proteger do perigo potencialmente fatal desta pandemia.

Mas o fracasso prático das políticas neoliberais de saúde não devem apenas dar-nos a oportunidade de denunciar a falência dos seus fundamentos ideológicos. Abre uma brecha que nós (as for- ças anti-capitalistas, associativas, sindicais e políticas) aproveitemos, denunciando a responsabilidade dos governantes, presentes e pas- sados, que conduziram essas políticas que nos levaram ao desastre atual, do qual a população que está pagando o preço está cada vez mais claramente consciente. Invertendo o postulado destas políticas, defendendo a ideia de que a saúde é, antes de tudo, um bem público e que, portanto, deve ser da atribuição dos poderes públicos, pode- mos pensar em propor, no que diz respeito à França:

- a revogação imediata do pedido de poupança de 800 milhões de euros no orçamento hospitalar para o ano 2020;

- a suspensão imediata do encerramento dos estabelecimentos hospitalares, dos serviços dentro dos estabelecimentos e da demis- são de funcionários e leitos dentro destes serviços, conforme pre- visto pelas agências regionais de saúde (ARS);

- a interrupção imediata do financiamento dos estabelecimentos através de taxas de serviço e o restabelecimento do financiamento com base num orçamento global compatível com as necessidades avaliadas pela equipe médica;

- a adoção de um plano de emergência para enfrentar a pan- demia, envolvendo particularmente a contratação trabalhadores da saúde e uma reavaliação de seus salários, juntamente com a adoção de um programa plurianual de reequipamento e modernização dos estabelecimentos e o recrutamento de pessoal (médicos, enfermei- ros, auxiliares de enfermagem, motoristas de ambulância, maqueiros, etc.), tudo com base nas demandas destes trabalhadores e de seus sindicatos;

- Financiamento de todas estas medidas urgentes através de um imposto de solidariedade excepcional sobre grandes fortunas;

- a requisição de todas as clínicas privadas, seu pessoal e equi- pamento, para lidar com emergências na luta contra o Covid-19 ;

- o cancelamento de todas as medidas de isenção de contribuições para a segurança social a cargo dos empregadores; um aumento des- sas mesmas contribuições para todos os ramos e todos os estabele- cimentos que representem riscos para a saúde dos seus empregados e populações vizinhas;

- o cancelamento de medidas anteriores de “desreembolso” de me- dicamentos e o restante a ser pago pelos pacientes (terceiros que pagam para os pacientes);

- a reorganização da medicina urbana em torno dos centros de saúde locais, reunindo especialistas, clínicos gerais, dentistas e pro- fissões vinculadas;

- a obrigação de todo o corpo médico, no final dos seus estudos;

- trabalhar durante um determinado período de tempo nestes centros de saúde, em troca da cobertura pelo Ministério da Saúde dos cus- tos de todos ou parte dos seus estudos;

- uma séria atualização dos recursos (financeiros, materiais, pes- soal) de todas as organizações públicas de pesquisa em saúde na forma de um plano plurianual;

 

- autonomia completa para os pesqui- sadores na definição de programas prioritários de pesquisa;

- a nacionalização dos principais grupos farmacêuticos, que de- monstraram amplamente, nesta ocasião como em outras, a inade- quação de seus programas de pesquisa e desenvolvimento em ter- mos de prioridades de saúde pública; e a abolição do sistema de patentes médicas, de modo a colocar os avanços da pesquisa o mais rápido possível a serviço do maior número possível de pessoas.

Estas são apenas algumas propostas que podem ser apresentadas no debate que deve acompanhar as mobilizações contra a execução de políticas neoliberais de saúde. Depois do movimento dos Coletes Amarelos e da luta dos trabalhadores da saúde, ambos ainda em curso, e no decurso do qual algumas destas propostas já foram apre- sentadas, a situação atual oferece-nos uma nova oportunidade de fazer ouvir a nossa voz e de impor exigências em nome da maioria da população. Devemos fazer ouvir a nossa voz para que o governo não aproveite a atual desordem para esconder as suas responsabili- dades e continuar pelo mesmo caminho, uma vez superada a atual crise da saúde. A que custo?

 

 

Notas

1] Este postulado, parte integrante de uma concepção individualista do mundo social (cuja máxima poderia ser: “a sociedade é apenas uma soma de indivíduos”), está mais amplamente no cerne de todas as políticas neoliberais. Está, por exemplo, no cerne do desmantela- mento em curso dos sistemas de pensões que consiste, precisamen- te, na instituição de uma “conta de pontos individuais”. Quanto à noção de capital de saúde, ela é apenas uma variação da noção mais geral de “capital humano” desenvolvida por Gary Becker. Para sua crítica, refiro-me ao artigo dedicado a ele em La novlangue néolibérale, Página 2 e Syllepse, 2017.

2] Cf. os resultados do último inquérito sobre as condições de traba- lho na Europa: https://www.eurofound.europa.eu/fr/surveys/euro- pean-working-conditions-surveys/sixth-european-working-condi- tions-survey-2015.

3] “A poluição do ar pode ser duas vezes mais mortal do que se pensava anteriormente. Um estudo publicado na terça-feira 12 de Março [2019] concluiu que o juiz responsável por 8,8 milhões de mortes prematuras por ano em todo o mundo, incluindo 6.000 em França. “https://www.francetvinfo.fr/sante/environnement-et-sante/pollu- tion-de-l-air-une-nouvelle-etude-revoit-le-nombre-de-morts-a-la- -hausse_3229709.html consultado a 14 de Março de 2020.

4] Segundo o Inserm (Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica), 17% (um sexto) dos adultos que vivem em França são obesos. ht- tps://www.inserm.fr/information-en-sante/dossiers-information/ obesite consultado em 14 de março de 2020.

Terra sem amos https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/03/coronavc3adrus-e-a-luta-de-classes-tsa.pdf

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