Retomar!
Crônica da psicodeflação #7
Franco 'Bifo' Berardi
19/05/2020
Telegrama [es]
Más allá del colapso: tres meditaciones sobre las condiciones resultantes [es]
Crônica da psicodeflação #6 [pt]
Crónica de la psicodeflación #5 [es]
Crónica de la psicodeflación #4 [es]
Crónica de la psicodeflación #3 [es]
Crónica de la psicodeflación #2 [es]
Crônica da psicodeflação #1 [pt]
Crônica Final
Ben venga maggio
e 'l gonfalon selvaggio!
Ben vem na primavera,
che vuol l'uom's'innamori:
e voi, donzelle, a schiera
com li vostri amadori,
che di rose e di fiori,
vi destino belle il maggio
Angelo Poliziano, Balada XIII
11 de Maio
Desde que minha mãe partiu em maio de 2015, após um ano de sofrimento e agonia, a morte tem sido o tema dominante da minha reflexão.
Eu a cortejava, em certo sentido, e a desafiava a me visitar se possível à noite, sem fazer barulho. A idéia de uma velhice longa, sofrida e obtusa, a idéia de um súbito colapso que toma a consciência me aterrorizava. E, francamente, nunca acreditei que a longevidade seja uma estratégia inteligente do ponto de vista da vida feliz, todas as besteiras sobre idosos que envelhecem bem fazendo ginástica e coisas assim nunca me convenceram. Digamos que a longevidade não me convém, os outros que façam como queiram.
Em meados de 2019, comecei a escrever um livro do qual eu gostava especialmente do título. Devir nada.
Belo título, não é?
Eu escrevi umas cem páginas, mas muitos assuntos permaneceram em rascunho, e além de tudo eu não estava com pressa. Também pensei que talvez um livro chamado Devir nada devesse desaparecer lentamente como seu temerário autor, e permanecer incompleto à margem da eternidade.
Nos últimos dois anos, então, depois da maldita viagem para Houston, depois daqueles três dias no lugar mais horrível em que já estive, até mesmo o desejo de viajar estava se esvaindo aos poucos. Toda vez que eu ia a algum lugar (eu continuei fazendo isso até fevereiro), eu sentia que estava sob um estresse inútil, falar em público tinha se tornado cansativo. A última palestra pública que dei, em Lisboa, no dia 20 de fevereiro, lembro-a como um pesadelo. Eu estava falando num centro social dentro de uma espécie de garagem ampla e longa, cheia de uma multidão barulhenta e colorida. O tema, vagamente azaroso, se bem me lembro, era o apocalipse irônico, ou talvez a Ironia Apocalíptica. Pouco importa, de fato eu estava brincando com fogo.
Naquele dia eu não estava bem : meu ouvido estava doendo, minha cabeça latejava, mal podia respirar, e a certa altura, enquanto eu falava com aquela multidão absorta, o grito dilacerante de uma sirene veio de fora. Talvez uma ambulância, talvez um carro da polícia, eu não sei. Aquele barulho infernal sibilou no grande salão, me fez perder o equilíbrio, a calma e, acima de tudo, o fio condutor do meu discurso. A onda de pânico durou por um décimo de segundo em um silêncio inquieto, então eu retomei normalmente, sendo espirituoso sobre meu estado de confusão mental. Eu disse que estava me sintonizando com a psicosfera de pânico, e que a sirene uivante fazia parte da performance, e concluí prometendo revoltas felizes como sempre. Dois dias depois voltei à Itália, e quando cheguei ao aeroporto de Bolonha uma pistola termométrica estava apontada para a minha cabeça e eu tinha provas de que o mundo estava entrando numa nova era.
Nos meses seguintes tudo mudou, nem tudo, mas muitíssimo. Antes de mais nada, a viagem a Lisboa foi a última, pelo menos por enquanto, e não posso excluir que seja a última para sempre. Veremos.
A partir daquele momento, minha curiosidade sobre o futuro capturou minha vida mental com um fascínio tão forte que propus à minha obscura irmã que eu cortejava impudentemente para esperar mais um pouco; primeiro eu gostaria de ver como isso vai acabar. Eu sei, eu sei que não vai acabar em lugar nenhum, porque nada nunca acaba e sempre tudo continua. Mas ao menos entender que rumo toma a história do mundo, se me permite.
Detesto aqueles que se sentem constrangidos ou mesmo chocados quando se fala da morte, como se fosse um assunto indelicado. Um filósofo muito respeitado há alguns anos me disse: escute, já que você fala sobre a morte tantas vezes, por que não se suicida? E acrescentou que para Spinoza só a vida é um assunto com o qual o filósofo pode lidar. Me convenci então que o filósofo muito respeitado não é mais que um presunçoso. Um filósofo que não se ocupa da morte, Spinoza me perdoe, não é um filósofo, mas um chocolateiro.
Nos Estados Unidos os mortos são oficialmente 80.000, o que significa que são ao menos o dobro. Isso não preocupa muito o presidente, que até alguns dias atrás estava enviando mensagens atrevidas e combativas; mas nos últimos dias ele suspendeu conferências de imprensa nas quais dava conselhos médicos, e o vimos um pouco franzido. O semestre que o separa das eleições corre o risco de não ser nada fácil para ele; e agora, para completar, três pessoas que trabalham diariamente na Casa Branca deram positivo para o teste de coronavírus: a porta-voz de Pence, um mordomo e um consultor que freqüenta a protegida West Wing do edifício presidencial. Não poderia ser pior para o mammasantissima: se mesmo ali dentro, no lugar mais protegido que existe, três pessoas foram pegas pelo vírus, é difícil continuar incentivando as pessoas a voltarem a trabalhar.
Os desempregados são agora cerca de vinte e cinco milhões e espera-se que sejam trinta e cinco até o próximo mês. E porque naquele país, aqueles que não têm dinheiro não podem ser curados, os pobres, os afro-americanos e os latinos estão morrendo aos milhares todos os dias, todos os dias, todos os dias.
Uma iluminação e uma esperança: e se o Trump um dia desses –entre um tweet e outro– morrer como um cão? Talvez ele não se importasse de ir embora agora. Poderia apresentar-se a São Pedro dizendo: – Eu sou o Presidente dos Estados Unidos, deixe-me passar. Mas eu acho que São Pedro ia mandar ele ir se foder. Mas pelo menos a bola inflada poderia evitar que esse jegue seja batido por um cavalo coxo como Joe Biden, enquanto houver quarenta milhões de desempregados barulhentos lá fora.
Como que então, pensando no Presidente dos Estados Unidos, me veio à mente o trabalho de Manzoni? Eu não sei, mas vou deixar você imaginar. Ontem à noite me ocorreu a cena em que Don Rodrigo acorda à noite e descobre que ele tem em seu corpo "uma pústula imunda num hematoma roxo". Certamente você se lembra: "o homem se sentia perdido. O terror da morte o invadiu, e com um forte senso de aventura, com o terror de se tornar presa dos monatti, de ser pego e jogado no lazareto".
O que faz então, aterrorizado, o líder dos malvados, o sequestrador de Lúcia? Ele liga para o vice-presidente? Mais ou menos:
Ele agarrou a campainha e a sacudiu violentamente. O Griso, que estava de prontidão, apareceu imediatamente. Parou a uma certa distância da cama, olhou atentamente para o patrão e se certificou do que ele havia planejado para a noite.
"Mike", exclama o desgraçado, "Quero dizer, Griso. Você sempre me foi fiel..."
"Sim, senhor."
"Eu sempre fiz o bem pra você".
"Por sua bondade".
"Eu posso confiar em você..."
"Demônios..."
"Estou doente, Griso".
"Eu notei..."
"Você sabe onde mora Chiodo, o cirurgião?" (então se chamava Anthony Fauci...)
Don Rodrigo implora a Griso que vá procurar o cirurgião e volte com ele, mas previsivelmente Griso o trai, como por certo se recordam meus vinte e cinco leitores.
Ao invés de ir a Fauci, ele vai aos monatti, avisa que seu patrão tem o coronavírus, leva-os à casa do pobre Don Rodrigo que, naturalmente, vendo-se traído, fica muito, muito magoado: "Os monatti o levam, um pelos pés e outro pelos ombros, e o colocam numa maca que tinham deixado na sala ao lado; depois, levantando o peso miserável, o levam embora".
12 de Maio
No início de maio estava previsto o lançamento do meu livro que mais gosto, talvez seja pelo fato de que trabalho nele há mais de vinte anos e não termina nunca, tanto que se chama E – como erotismo, estética, epiderme, extinção etc.
Chama-se E porque começa citando Rizoma onde os dois companheiros dizem (lembra-se?) que a história da filosofia ocidental é feita de disjunções ou... ou... ou... e em vez disso agora temos que fazer uma filosofia de conjunções e... e... e...
No ponto.
Falei com a editora - que é a editora deste site [not.neroeditions.it] que você está lendo - e decidimos adiá-lo porque esse é um livro atemporal, e substituí-lo por um pequeno livro chamado: Fenomenologia do Fim. Comunismo ou extinção. Ou ainda: Fenomenologia do fim. Mas de que fim estamos falando? Ou quiçá..
13 de Maio
Não tenho a ilusão de que o colapso pandêmico tenha efeitos socialmente positivos de imediato. Pelo contrário, como escreve Arundhati Roy, "o coronavírus entrou no corpo humano e amplificou as doenças existentes, entrou em países e sociedades e amplificou suas doenças e patologias estruturais". Tem amplificado a injustiça, o sectarismo, o racismo, as castas e, sobretudo, a desigualdade". Segundo Arundhati, o vírus parou a máquina; se trata agora de parar o motor, para deixar definitivamente inoperante a economia orientada para o lucro. A todo custo.
O ciclo de acumulação não será retomado, porque as articulações estão deslocadas: a da saúde, a psíquica, a produtiva, a distributiva... tudo está fodido.
Nas últimas décadas, a precarização do trabalho tornou a sociedade frágil e enfraqueceu sua resistência. A Covid19 foi o golpe final: a sociedade foi perturbada pelo confinamento obrigatório e pelo medo, e no momento não é possível resistir com a ação. Mas, por mais que possa parecer paradoxal, é justamente a passividade que derrotará o capitalismo e o levará à morte por asfixia. A forma mais subversiva de passividade é a insolvência, que consiste em explodir tudo, sem fazer nada e, mais precisamente, limitando-se a não pagar pelo simples motivo que não podemos pagar.
A insolvência não precisa ser divulgada, predicada, berrada: ela virá de si mesma como uma conseqüência natural do colapso da economia. A insolvência não é uma falta, mas uma necessidade universal. E a sociedade terá que começar a experimentar formas locais e autônomas de produção e distribuição, visando a sobrevivência e o prazer.
Em agosto do ano passado recebi um telefonema de Marco Bertoni, músico que talvez conhecesse nos anos 80, quando ele fazia parte do Confusional Quartet, que tinha um lugar particular na cena musical bolonhesa naqueles anos, nada marginal, mas extremo. Naqueles anos o vento punk-no wave tinha chegado a Bolonha e se misturado com as últimas rajadas da tempestade insurrecional de 77. A cena musical estava abarrotada e apaixonada: o espetacular Skiantos, o radical-punk Gaznevada, o experimental Stupid Set, e outros que eu não lembro.
Os Confusional eram a música mais culta e refinada, mais contemporânea do que pop, mais um jazz frio do que o quente punk-rock. Quarenta anos depois, em agosto de 2019, Marco me chamou para me dizer que queria fazer uma obra de arte da qual ele tinha apenas o título em mente. E que ele queria fazer isso comigo, não sei por quê. O título me impressionou, pois sintetizava eletricamente muitas das linhas que atravessam esse tempo: a grande migração, a grande repulsão, a violência tecno-financeira abstrata e a violência concreta do retorno dos nazistas.
Quando ele me disse o título que tinha em mente, nós concordamos imediatamente: Wrong Ninna Nanna.
Imaginei uma jovem mãe hondurenha que tinha chegado à divisa entre Tijuana e San Diego, mas na fronteira há guardas armados e agora ela não sabe mais para onde ir e o que fazer e está sentada no chão, aconchegando seu bebê. Mas ela também poderia ser uma jovem nigeriana ou tunisiana num barco de borracha em direção à costa siciliana.
Marco e eu tentamos imaginar qual a sensação de uma mãe que deu à luz a um ser delicado e vulnerável, que não consegue refletir o suficiente sobre o mundo em que o recém-chegado tem que crescer.
Há alguma razão para reproduzir-se?
No filme Cafarnaum, a diretora libanesa Nadine Labaki conta a história de um menino sírio de 12 anos, refugiado em um infernal campo de refugiados em Beirute, que denuncia seus pais ao judiciário por tê-lo trazido ao mundo. O filme de Labaki foi para mim a principal inspiração para os textos que escrevi para Wrong Ninna Nanna: são poemas amassados na angústia de uma era sem esperança. Começamos a trabalhar neles em setembro, depois veio o outono da convulsão, a revolta gigantesca e furiosa em Hong Kong, em Santiago, em Beirute, em Paris, em Barcelona.
Marco começou a compor com todos os instrumentos musicais com os quais a Mãe Natureza o dotou: as folhas, o vento, os corvos, os pardais, a água corrente, e até mesmo seu piano furiosamente ruidoso e coros de vozes angelicais e misteriosas.
Depois perguntamos a uma amiga artista que me lembro de ter conhecido em Nova York quando ela cantava nos clubes punk do Lower East Side e eu era jornalista musical, e que Marco seguiu em sua carreira artística - Lydia Lunch, uma das maiores intérpretes musicais do nosso tempo. Ela disse sim, e gravou algumas músicas em seu estúdio, então ela nos enviou as gravações e assim começou um longo trabalho de edição. Então eu escrevi para Bobby Gillespie, o magnífico magrelo do Primal Scream, que certamente todos conhecem. Você tem vontade de colocar sua voz recitando e cantando e fazendo o que quiser com essas palavras e sons? Ele disse que sim.
Depois veio o coronavírus, a pandemia, o lockdown, e naquele momento a maldição parecia perfeitamente cumprida, e criamos uma música introdutória chamada "Earth and World", uma canção para voz abstrata, para voz não-humana.
Uma gravadora nos ofereceu uma edição em vinil. Sim, mas quando? Quando podemos retomar a produção de discos, de livros, de filmes?
Mais cedo ou mais tarde.
Entretanto, enquanto esperamos que o vinil saia, queremos introduzir online esta obra que parece ser a trilha sonora do apocalipse. Conversamos com nossos amigos Cuoghi & Corsello, artistas bolonheses que conheço desde os anos 80, quando algumas de suas tags encheram as paredes dos subúrbios de Bolonha, e os propusemos a colaborar na realização do vídeo de Wrong Ninna Nanna.
Nos encontramos exatamente um dia antes do início do lockdown, e na solidão criativa desses dois meses C&C realizaram os vídeos de algumas faixas. Os outros foram feitos por Marco Bertoni com a ajuda de seu filho. Stay tuned.
14 de Maio
Manifestantes de milícias armadas ajudam a reabrir comércios no Texas.
Segundo o jornal A Folha de São Paulo, as milícias bolonaristas não vão aceitar a derrota e estão se armando.
Guerra civil global no horizonte.
Segundo Lorenzo Marsili, não devemos esperar muito do fim do mundo: "Esqueçam os sonhos campestres de desaceleração". Basta pensar neste paradoxo: a aceleração vertiginosa do mundo e do tempo ao nosso redor acontece através de uma crise que nos obriga a retardar. Um estranho mecanismo parece instaurar-se pelo qual quanto mais paramos, mais a realidade se transforma pelo nosso ficar em casa. A Covid-19, longe de retardar o mundo, acelerou fortemente os processos de transformação pessoal, política e econômica já em curso.
Um esfacelamento mais que um colapso.
Nem mesmo a Covid-19 vai mandar o mundo pelos ares. Mas poderá certamente levá-lo a sua ulterior degeneração: os negócios artesanais poderão fechar sempre mais rápido em benefício da grande distribuição organizada; poderá haver um aperto de medidas de austeridade para expiar a dívida necessária; poderá haver um fortalecimento da tendência dos mais ricos em preparar rotas de fuga, acelerando o processo de desprendimento das elites da sua comunidade nacional. O ponto é que a crise não é mais uma interrupção da normalidade. A normalidade é crise. A crise não é mais um momento decisivo, não é mais um divisor de águas, não é mais o momento heróico. E, portanto, não é mais um conceito útil. Se tivéssemos que fazer uma lista das coisas que mais sentimos falta nesta quarentena - um exercício útil, nem que seja para perceber a pouca importância que um certo consumismo tem em nossas vidas - as relações humanas certamente estariam no topo da lista. Sentimos falta dos nossos amigos. Mas todos eles? Aqui está um exemplo simples do que significa superar a escolha binária entre crescimento e decrescimento. Menos amigos e mais amizade".
15 de maio
Escrevo citando um comentário do Giap de Wu Ming, sentado na beira do rio: "É uma espécie de princípio de indeterminação no sentido hisenberiano, entre o vírus e a emergência". Você não pode olhar e manter os olhos fixos em ambos, mas ou você subestima um ou o outro. Você subestima aos olhos do outro. Ou seja: para quem vê bem o vírus (ou acredita vê-lo bem) a emergência é apenas uma contingência que passará se o vírus passar; para quem vê bem a emergência (ou acredita vê-la bem) o vírus, por mais grave e perigoso que seja, será cada vez menos letal do que as conseqüências que as políticas de emergência estão causando. Toda discussão tem essa instabilidade dentro dela e trazê-la à superfície só pode ser boa".
Como costumo fazer depois de ler Wu Ming, me dou conta de ter aprendido alguma coisa. Vou parar um momento e meditar sobre isso.
Esta noite aqui no terraço há uma luz celestial que não quer terminar e se esvanece lentamente em melancolia. Vamos fazer meia hora de yoga e um longuíssimo mantra antes que a luz do sol se apague de vez.
Em Bolonha, sete companheiras e companheiros do círculo anarquista Il Tribolo foram presos com a acusação anormal de associação com o objetivo de terrorismo ou de subversão da ordem democrática. São companheiras e companheiros que se destacaram* na solidariedade e apoio aos presos, totalmente dentro* do movimento transversal antipresidiário que recomeçou a se expressar nos últimos meses nas prisões no presídio de Dozza e nas iniciativas na cidade.
Toda a operação contra eles assume características de anormalidade: desde a perseguição com drones (porque, com a caça aos runners acabando, de algum modo necessitavam usá-los), até a invasão das casas dos carabinieri em equipamentos de choque, com capacetes e escudos. Transferidos para as prisões e segurança máxima de Piacenza, Alessandria, Ferrara, Vigevano. Por quê?
O único delito específico a ser contestado: o dano a uma ponte repetidora, cuja atribuição, obviamente, está para ser demonstrada, mas que lembra, tristemente, montagens de outros tempos em Val di Susa.
O comunicado de imprensa do Ministério Público tem o caráter de documento político: afirma o caráter preventivo da intervenção "com o objetivo de evitar que em qualquer momento de tensão social, decorrente da situação particular de emergência acima descrita, outros momentos mais gerais de "campanha anti-estatal" possam ocorrer, em consonância com a diretiva emitida pelo Ministro Lamorgese aos prefeitos para evitar "surtos de expressão extremista".
Uma onda de repressão preventiva está sendo preparada, no clima de medo e isolamento que o lockdown tem fomentado.
16 de Maio
Guido Viale me é pessoalmente antipático desde que publicou, em julho de 1970, no jornal diário Lotta continua, uma longa crítica ao meu primeiro livro chamado Contro il lavoro. Eu nunca o perdoei, mas admito que em tempos recentes ele sempre escreve coisas inteligentes. Hoje ele publicou na Comune-info um artigo no qual fala de normalidade "reforçada": "Reforçada para compensar o tempo perdido: não o de Proust, mas o do PIB: mais produção, mais exploração, mais precariedade - ou seja, falta de perspectivas e futuro - para todos, mais endividamento, mais desigualdades entre ricos e pobres, mais marginalização dos que ficam para trás, mais rejeições dos que não devemos ver entre nós (para podermos explorá-los melhor), mais indiferença para com "vidas desperdiçadas". Por muito tempo, para o trabalho de reprodução ou cuidado - cujo papel essencial no funcionamento da sociedade, mas há muito escondido, tem sido trazido à luz pelos movimentos feministas - tem sido reivindicada uma "igual dignidade" e remuneração adequada para o que era conhecido como trabalho produtivo. Em outras palavras, era uma questão de empurrar o trabalho de cuidado dentro da esfera do trabalho produtivo através da luta. Hoje, porém, é claro que o movimento a ser promovido é exatamente o contrário: é preciso lutar para transformar todo trabalho produtivo em trabalho de cuidado com a Terra, com os vivos, com a convivência humana, com a reprodução da vida. É o cuidado que deve atrair, acolher e transferir dentro de sua própria esfera de significado e revalorização o chamado trabalho "produtivo", percebendo, dentro dessa transformação, esse reequilíbrio entre gêneros e papéis que o "desenvolvimento das forças produtivas" nunca conheceu e não pôde alcançar: uma inversão não insignificante do campo. É nesta perspectiva que a reivindicação de uma renda incondicional pode perder seu caráter de retribuição - "pagar-me em troca de algo"; e assumir as conotações de uma reivindicação consubstancial ao pertencimento comum a um único gênero humano".
17 de Maio
Depois de ter meditado sobre as palavras de Wu Ming que citei anteriormente, agora vou tocar num ponto sensível, e não quero que ninguém me entenda mal.
Certamente não sou um fanático por produtividade, nem idolatro a liberdade como um valor abstrato. Eu sou um anarquista, mas isso não significa que eu ache certo foder os outros em nome da liberdade mesma. Pelo contrário, acredito que o mito da liberdade (de alguns) tem sido muitas vezes usado para impor a escravidão da maioria.
Mas quando em março ouvi falar da obrigação de ficar em casa, quando vi os comerciais das celebridades nos convidando a imitá-los ficando em casa, como se todos tivéssemos a piscina, o terraço e o mordomo, imediatamente pensei que havia algo errado. Mas mais errado ainda foi o convite contrário para retomar o trabalho na linha de montagem a todo custo. A Confindustria é pior do que Fiorello.
Poucas histórias: para impedir a propagação do vírus e matar milhões de pessoas, foi correto parar tudo. Mas agora, dois meses depois, temos que ir ver os dados sobre a letalidade do vírus e descobrir que eles são bastante baixos. Também interessante é a idade média dos mortos. 80 anos na Áustria, 80 na Grã-Bretanha, 84 na França, 81 na Itália, 84 na Suíça e 80 nos Estados Unidos. Como estou na casa dos setenta, não acho nada certo deixar pessoas idosas morrerem sem se preocupar muito com elas. Em suma...
Devemos reconhecer que o perigo do vírus tem sido um pouco superestimado? Nesse caso, é melhor superestimar do que subestimar, não há dúvida. Mas o que precisa ser explicado é porque surgiu a tempestade de informação mais angustiante de todos os tempos.
Repito que sou um grande fã do lockdown e detesto "libertários" que querem fazer as pessoas trabalharem com desprezo pelo perigo. No entanto, sem nenhuma intenção polêmica em relação a medidas preventivas, eu me pergunto: por que isso acontece?
Minha resposta é complexa, mas simples.
Na primavera de 2020 testemunhamos uma crise de pânico global cuja causa só ocasionalmente estava ligada à pandemia, e mais profundamente dependia do estresse psíquico de uma sociedade forçada a trabalhar em condições precárias de competitividade e miséria, bem como do estresse físico de um organismo debilitado pela poluição do ar e da linguagem.
Se não fossem impostas medidas de confinamento, o vírus teria matado muito mais - portanto, viva o lockdown.
Mas o que precisa ser contido e erradicado não é apenas o vírus que desencadeia reações que às vezes são extremamente dolorosas e às vezes letais. É também a poluição sistemática do meio ambiente, o estresse da competição econômica e a hiperestimulação eletrônica. E isto não será feito por médicos ou por uma vacina. Nós mesmos devemos fazer isso, com a luta de classes. Warren Buffett tinha razão quando disse que a luta de classes não acabou, eles simplesmente a venceram, os chacais. Isso foi ontem, mas agora é amanhã. A luta de classes vai ser retomada, e desta vez os chacais estão tão desorientados quanto nós.
18 de maio
O New York Times traz um artigo de Roger Cohen, um jornalista liberal, moderadamente progressista e muito culto. Talvez o meu jornalista americano favorito. O título "The masked against the unmasked" se anuncia bastante misterioso, mas o texto é claríssimo, desde as primeiras linhas.
"...um vizinho do Colorado me disse: os outros, (os trumpistas) estão armados e não vão parar por nada. O que diremos aos nossos netos quando Ivanka Trump tomar o poder como 46º presidente dos Estados Unidos em 2025 e os fins de mandatos da presidência forem abolidos? Diremos que fizemos o que podíamos com as palabras, mas que eles tinham os fuzis"?
É claro que, logo depois, Cohen acrescenta que discorda do seu vizinho e que a democracia americana não é como a húngara.
Mas estou interessado na substância, não nas boas intenções do iluminado liberal Cohen. Estou interessado em saber que uma guerra civil está sendo preparada na América, ou uma vitória psicopática para os supremacistas. E o que está sendo preparado na América também está sendo preparado no Brasil, e em muitos outros países do mundo: a guerra civil é a perspectiva mais realista. Temos que nos armar também? Acho que não, se isso acabar em tiroteio, não há dúvida de que vamos perder. Mas precisamos saber o que nos espera, e parar de dizer frases retóricas sobre a democracia que já está morta e enterrada, para inventar uma resistência à altura da tormenta que está por vir.
Devo fazer uma confissão embaraçosa: eu tenho mudado ultimamente, minha personalidade mudou, enfim, eu não me reconheço mais. Não por causa da pandemia ou do lockdown, lembre-se, isso seria perdoável. Não: isso aconteceu por causa do Netflix.
Me explico: por cerca de quinze anos Billi e eu concordamos em uma coisa: basta de televisão. Durante anos todas as noites arruinávamos nosso jantar com aqueles babacas e as avalanches de merda que saíam deles. Basta.
A tela da TV foi inundada com trepadeiras, cactos e rododendros, e depois foi parar no lixão. Durante quinze anos eu não vi mais TV, exceto por alguns segundos em algum bar infame.
Então eu me tornei um desajustado social. Nas discussões com conhecidos me escapava metade das referências, pessoas muito conhecidas eram completamente desconhecidas para mim. Melhor para mim se eu não soubesse quem era Giletti.
Depois veio o lockdown e sabe o que eu fiz? Eu não fui comprar outra TV, não vamos exagerar, mas entrei na Netflix. Paguei nove euros e recebi uma lista de coisas que eu não sabia que existiam. Mais ou menos ao acaso, escolhemos ver algo chamado Casa de papel - achamos que era a tradução de House of Cards. É uma produção espanhola sobre um roubo gigantesco na Casa da Moeda nacional. Não um assalto na realidade, mas a ocupação da casa onde o dinheiro é impresso: o objetivo é imprimir cerca de 2,4 bilhões de euros com a colaboração dos reféns. Entre os reféns está a filha do embaixador britânico na Espanha, e os heróis do roubo dão-se cada um o nome de uma cidade: Tóquio, Moscou, Berlim, Nairóbi, Rio, Denver, Helsinque e Oslo.
Bom, eu não vou contar tudo agora, mas eu tenho que contar uma coisa. A Casa de papel é belíssima, esmagadora, melhor que Dostoievski, melhor que Stendhal, melhor que toda a história da literatura universal. Certamente algumas coisas podem parecer improváveis (como a libertação de Tóquio por quatro sérvios barbudos). Mas quando você lê a Odisséia como você pode acreditar que Ulisses nadou metade do Mediterrâneo? Você só acredita nisso porque Homero disse isso.
Confesso que sempre tive uma fraqueza por roubos, desde quando estive na prisão de San Giovani, em Monte, onde fui detido por crimes políticos irrelevantes, conheci Horst Fantazzini, que havia roubado uma dúzia de bancos na Emília sem nunca ter uma arma de fogo: ele ia aos balcões simplesmente dizendo (com o exercício que os lingüistas chamam de "ato linguístico performativo"): isto é um roubo. Os caixas lhe davam tudo o que tinham na caixa registradora e ele saía sorrindo alegremente. Uma vez em Piacenza um caixa lhe disse para sair ou chamaria a polícia, e Horst (que era um cavalheiro refinado, falava muito bem francês, e na prisão estava usando um casaco de veludo amaranto) lhe respondeu: com licença, voltarei em outra hora.
Infelizmente sou um cagão e nunca ousei roubar ninguém. Limitei-me a conceber insurreições improváveis contra o Estado e vivo com uma modesta aposentadoria de professor que provavelmente desaparecerá nos próximos anos, juntamente com o estado italiano e todos os outros.
Mas, em suma, até dez dias atrás eu estava bem informado, lia o Financial Times, o New York Times, o Le Monde, o il manifesto, L'Avvenire, El país, além de três a quatro revistas semanais e grandes livros de história e filosofia todos os dias. Agora não sei quase nada, só penso na Casa de papel, no professor amigável, na belíssima Tóquio e no enigmático e perturbador Berlim.
Meu ódio por bancos, por dinheiro e por aqueles que o acumulam no momento é expresso dessa maneira, mas espero que nos próximos meses, enquanto o capitalismo continue em colapso como um castelo podre, a expropriação se torne popular.
Talvez a mudança na minha personalidade se deva também a ter ficado sem drogas. Li que as rotas de suprimento meio que acabaram, e de qualquer forma os caras de quem eu costumava pegar suprimentos não foram vistos desde que o maldito vírus os separou de mim. Abstinência não me faz mal, atenção. Pelo contrário, sem os meus três beques diários o meu cérebro fica exageradamente excitado, e eu concebo pensamentos dos quais não deveria falar tão alegremente. Eu só estou falando pra vocês, queridos amigos, mas bico calado. Que não saibam por aí.
No entanto, este sétimo sigilo é o último de minha longa crônica da psicodeflação.
Eu os deixo, não sei o que vou fazer agora, mas como vocês bem sabem, um bom jogo dura pouco e esse já durou três meses.
Ontem, por decreto, voltamos à vida normal. Sort of.
Como Andrea Grop sugere em uma mensagem que compartilhei imediatamente, a palavra de ordem é: retomar. Também queremos retomar, é claro. Queremos retomar a riqueza que foi privatizada, queremos retomar os prédios vazios de uma instituição financeira, queremos retomar o dinheiro acumulado através da exploração do trabalho. A palavra de ordem é: distribuição, expropriação, socialização dos meios de produção, garantia de renda para todos sem distinção de sexo, crença religiosa e origem geográfica.
Você vai ver que daqui a um ano quase todo mundo vai entender que se os expropriadores não forem expropriados, a maioria das pessoas como eu e como você vão acabar na miséria total e morrer mal. E é melhor morrer bem do que morrer mal.
Alguém estava se perguntando se sairemos do confinamento melhor ou pior. Depende do que significa: o medo, o distanciamento, a chantagem econômica certamente não nos tornará mais solidários, pelo menos por um tempo. Os proprietários vão usar o desemprego como chantagem; os donos da FIAT já estão chantageando o Estado, pedindo bilhões de euros para sua empresa imunda, que depois de ter explorado os trabalhadores e sugado as contribuições do Estado italiano por décadas (não) paga seus impostos na Holanda e demite em Turim e Pomigliano.
Vai acontecer, e sofreremos. Sofreremos muitas coisas nos próximos meses, sofreremos a violência dos racistas contra os migrantes, sofreremos a arrogância dos patrões e a dos fascistas. Mas não sofreremos para sempre porque o poder não se consolidará, a máquina econômica não recomeçará, está irreversivelmente desequilibrada.
Tudo será instável, como uma tripulação bêbada em um barco no meio de um mar tempestuoso. Precisamos nos preparar para um longo período de instabilidade e resistência, e precisamos fazer isso agora. A resistência significará a criação de espaços de autodefesa para a sobrevivência, para a produção do indispensável, do afeto e da solidariedade.
Há pelo menos oitenta e cinco probabilidades em cada cem, talvez até noventa, e eu acho até noventa e uma, que a vida social vai piorar, que as defesas sociais vão desmoronar, que as formas de controle tecno-totalitário vão se enfiar no corpo doente da sociedade, que o nacionalismo belicista vai prevalecer. É provável provável provável. Talvez inevitável.
Mas se na noite de Ano Novo eu tivesse te conhecido na rua e dissesse que no espaço de três meses haveria trinta milhões de desempregados na América, que o preço do petróleo cairia a zero dólares por barril, que o transporte aéreo pararia em todo o mundo e que o 11 de setembro seria uma piada em comparação a isso, você teria me internado num hospício.
E aqui estamos.
Sabe por quê? Bem, eu já disse não sei quantas vezes: porque o inevitável não costuma acontecer, de fato é o imprevisível que sempre prevalece.
Siete Beatriz Toledo