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Xeque

Crônica da psicodeflação #6

Franco 'Bifo' Berardi

11/05/2020

Scacco [it]

Jaque [es]

Telegrama [es]​

Más allá del colapso: tres meditaciones sobre las condiciones resultantes [es]

Crónica de la psicodeflación #5 [es]

Crónica de la psicodeflación #4 [es]

Crónica de la psicodeflación #3 [es]

Crónica de la psicodeflación #2 [es]

Crónica de la psicodeflación #1 [es]

Det sjunde inseglet_Ingmar Bergman_1956.

 

El séptimo sello (poster) 1956

​No horizonte do nosso século, as cores da extinção estão sendo desenhadas - e a humanidade não está à altura da situação :'(

"Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo,

houve um silêncio de cerca de meia hora no céu

e vi os sete anjos de pé diante de Deus,

e sete trombetas foram dadas a eles"

(Apocalipse)

 

 

29 de Abril

Tem um cara cujo nome eu não vou dizer (vamos chamá-lo de EffeZeta) que é meu amigo no Facebook, bom, digo amigo só por dizer. Ele não perde nenhuma chance de me chamar de cretino, às vezes eu respondo amigavelmente, às vezes não.

Mas eu sempre o achei simpático com seus comentários desdenhosos de um anarco-marxista radical que está de saco cheio de intelectuais como eu. Como não entendê-lo?

Hoje, pela primeira vez, ele se dignou a me enviar uma mensagem bastante longa, articulada e nada polêmica. Talvez ele tenha me perdoado, e eu o leio.

Abaixo repasso algumas delas, não todas, mas quase, tomando a liberdade de fazer algumas correções ou esclarecimentos, pois entendo que EffeZeta escreveu com pressa, ele não tem tempo a perder comigo.

"Se, do ponto de vista da organização do poder, a história dos últimos 14 mil anos tem sido aparentemente fragmentada e não linear, existe uma tendência absolutamente consistente. Que é a eliminação dos espaços físicos [eu diria antes a privatização dos espaços físicos levando à sua eliminação para a maioria - nota minha]. Uma das primeiras coisas que aconteceram em cidades-estado como Uruk, foi nomear a terra, nos dizem os arqueólogos. Aquele solo era propriedade de um rei, de uma cidade, pertencia a uma entidade "jurídica". Nos anos das guerras hitita-sumerianas, houve pactos de extradição. Não havia mais acesso livre à terra. Você estava preso a um solo, a um lugar. Este processo sempre foi contínuo. Os "enclosures" ingleses nos anos 1600 transformaram terras comuns, terras de ninguém, em terras do estado. Hoje não há um único centímetro quadrado de terra que não seja de alguém. Que não tenha um proprietário. E qualquer coisa que tenha um proprietário, se pode vender. Um exemplo assustador deste processo foi a aquisição de terras na Palestina pelos sionistas. Outro: os ingleses forçaram os povos indígenas na África a instituir formas de controle cadastral da terra, sabendo que era aqui que estava o controle e a vitória colonial. Hoje estamos em uma reviravolta histórica. Os livros de ficção científica há tempos nos dizem que as máquinas assumem o controle. Se passa a reconhecer como o único espaço habitável a sua propriedade. Portanto, tudo deve ser uma propriedade. Cada rua, cada jardim. Pode-se ter concessões para percorrer um território, mas em um contexto de espaço privado alugável. Nesse mundo, como é lógico, o Estado deve acabar, a propriedade estatal não existe mais, o monopólio da força já não pertence mais aos Estados-nação, os impostos do Glovo Google Amazon não entram mais nos cofres nacionais, a jurisdição não apela mais para a constituição, o Estado não imprime mais a moeda, pois a moeda nacional não existe mais, o público desaparece. Neste ponto, o controle total exige que o consumidor esteja conectado 24 horas por dia e aterrorizado com a fisicalidade. Neste ponto estamos bem encaminhados, a maioria das pessoas já está voluntariamente em casa. O 5G, nesse sentido, é indispensável. Uma tecnologia que pode lidar com 2 bilhões de dispositivos subcutâneos, além de toda a automação doméstica. Então o que estamos vivendo com 5G é o seguinte: grandes empresas privadas estão comprando nossos locais de vida: a apropriação de terras.

PS Obviamente o vírus em si não tem nenhum papel nesta história. O vírus como um problema em si não existe. Há o medo, que ataca nossa fraqueza, o terror de morrer, tendo a nós mesmos e nosso corpo como o único horizonte".

Então EffeZeta conclui com um auspício: "Foi-nos dito quando crianças que o povo não pode vencer, e claramente eles dizem isso para nos convencer a não agir". Se você tem filhos, ou um pedaço de dignidade, este é o momento de voltar a ser nômades. É hora de jogar os computadores pela janela. Tudo no mesmo dia. Em um ato épico de rebeldia".

30 de abril

A administração Trump está cortando fundos para os estados enquanto eles estão sob ataque do vírus. Vocês mesmos tem que fazer isso, diz ele aos governadores de Nova York e da Califórnia. É uma forma de pressionar os governadores a desistirem do lockdown, a retomar a atividade econômica custe o que custar, enquanto grupos de trumpistas armados entram na sede do governo de Michigan. Um dos manifestantes anti-lockdown carrega um cartaz que reivindica o trabalho que dá liberdade. O cartaz está escrito em alemão, e diz, para ser exato: "Arbeit macht frei".

 

1 de maio

The Economist está preocupado, com o realismo brutal que sempre caracterizou este antigo jornal: o livre mercado está em perigo. "As compras de títulos do Tesouro pelo Fed são muito parecidas com a impressão de dinheiro para financiar o déficit. O Banco Central anunciou programas de apoio ao fluxo de crédito para empresas e consumidores. O Fed atua como um credor em última instância à economia real, não apenas ao sistema financeiro... Larry Kudlow, diretor do America’s National Economic Council, chama o estímulo fiscal decidido pelo governo Trump de "o maior programa de assistência da Main Street na história dos EUA", comparando-o aos resgates de Wall Street de apenas uma década atrás. Nos Estados Unidos, os cidadãos receberão cheques de US$1.200". Com a assinatura do Trump. Arrogância suprema.)

E ainda no The Economist, se escreve: "O modelo do Estado que se estabeleceu na Europa entre os anos 50 e 70, onde os burocratas controlavam os serviços da eletricidade ao transporte seria inimaginável sem a experiência da guerra, onde o Estado controlava praticamente tudo, e as pessoas comuns faziam sacrifícios tremendos no campo de batalha e até mesmo em casa".

As catástrofes (guerras, pandemias) ajudam a fortalecer o aparato estatal, diz o The Economist, que teme acima de tudo que o Estado imponha impostos aos seus ricos leitores. "A nova idéia de que o governo deve a qualquer custo salvar empresas, empregos e rendas daqueles que trabalham poderia ser consolidada. Um número crescente de países tentará ser auto-suficiente na produção de bens estratégicos, como medicamentos, materiais de saúde e até mesmo papel higiênico, provocando um maior atraso na globalização. O papel do Estado pode mudar definitivamente. As regras do jogo mudaram durante séculos em uma direção, mas agora uma reviravolta radical surge no horizonte".

O socialismo de Estado que o The Economist pensa estar emergindo das medidas de apoio à demanda e ao fortalecimento da intervenção pública em setores como a saúde assusta o jornal do neoliberalismo global. Compreensível. Mas será que o intervencionismo estatal, por si só, pode salvar a situação, pode restituir energia a um corpo coletivo desgastado, distanciado, com medo de se mover? Não me parece.

O poder do dinheiro parece ter se esvaído.

Por muito tempo a aceleração tecno-financeira, por muito tempo a precarização trouxe à exaustão as energias mentais do gênero humano: agora o mundo parece ter entrado num estado de permanente debilidade.

Em 1976 Baudrillard intuiu que só a morte escapa ao código do Capital. Muito longe do cenário de expansão ilimitada, agora a morte aparece novamente no horizonte. Na época digital e neoliberal, a abstração financeira tem colocado a sociedade em xeque. Depois chegou o bio-info-psico-vírus, uma concreção material proliferante que colocou em xeque a abstração do Capital.

Agora tem início uma nova partida.

Como no filme de Bergman, onde o nobre cavaleiro Antonius Block, retornando da cruzada, encontra a Morte esperando por ele na praia com um mar tempestuoso. Ao seu redor, nas terras do Norte, a raiva, a peste e o desespero, e Antonius desafia a Morte com uma partida de xadrez, e a Morte consente com o adiamento. Assim, agora no horizonte do nosso século se desenham as cores da extinção, e a partida de xadrez pode começar. Vamos dar-lhe o nome de uma peça teatral de Samuel Beckett em que Nagg e Nell ficam no caixote do lixo, enquanto Hamm é cego e não pode caminhar.

Para vencer esta nova partida, me parece que seria necessário fazer duas jogadas simples, ou talvez três: redistribuir a riqueza produzida pela coletividade, garantir a cada um uma renda suficiente para levar uma existência frugal, abolir a propriedade privada, investir tudo em pesquisa, educação, saúde e transporte público. Simples, não? Infelizmente, não creio que estejamos à altura, quero dizer nós, o gênero humano. Simplesmente o gênero humano não está à altura da situação, há pouco que se pode fazer. E como diz Pris, a replicante do Blade Runner: somos estúpidos, morreremos. Não é o caso de se fazer um drama.

O bio-vírus é a irrupção da matéria subvisível no ciclo abstrato do tecnocapital.

Os gritos de protesto, as garrafas de coquetel molotov jogadas contra as vidraças dos bancos, o voto da maioria dos cidadãos gregos não conseguiu deter a agressão financeira contra a vida social, nem poderão coisa alguma as considerações razoáveis dos economistas e jornalistas que perceberam o perigo extremo dessa concentração louca de riqueza nas mãos de uma ínfima minoria.

Agora o bio-vírus se vinga, mas não há como governá-lo, curvá-lo para o bem comum. Então ele se torna info-vírus, se transfere para a infosfera e satura a mente coletiva com o medo, a suspeita e a distância. O risco é que se estabilize como um psicovírus, como patologia que tende a ser fóbica à epiderme, como paralisia do desejo erótico, e depois como depressão generalizada, e finalmente como psicose agressiva latente, pronta para se manifestar na vida cotidiana ou na dinâmica geopolítica mal articulada.

O circuito bioinfo-psicótico de contágio tornou inúteis os instrumentos tradicionais de intervenção financeira, e paralisou a vontade política, reduzindo-a à execução militar de um programa de saúde.

 

3 de Maio

Recebi uma mensagem do Angelo que termina assim: " Acreditávamos que a Terra, agora totalmente antropizada, já não esconderia mais surpresas de nós e, em vez disso, estamos entrando numa "terra desconhecida" onde os vírus são os "leões" do passado. Em suma, sigo o seu diário com certa angústia, tendo quase esgotado as esperanças de que as vaticínos que você destila, perscrutando dia após dia o horizonte, possam tornar-se menos sombrios e desesperados do que parecem".

Nathalie Kitroeff diz no New York Times que o embaixador americano no México está fazendo lobby para que as fábricas no norte do México, que abastecem o ciclo do carro ianque, retomem o trabalho apesar do contágio, apesar das medidas de confinamento decididas pelas autoridades do país sob constante ameaça do muro de Trump.

Christopher Landau, esse é o nome do embaixador, disse que se o México não atender às exigências norte-americanas, perderá as encomendas que mantêm essas fábricas funcionando. Ele é o embaixador do país que temos considerado o líder do Ocidente, do país que inspirou as reformas impostas pela força das armas e das finanças ao longo dos últimos quarenta anos. Mas é legítimo nutrir a esperança de que este país não sobreviverá à catástrofe que o está varrendo do mapa. A miséria, o desemprego, a depressão, a violência psicótica, a guerra civil logo vão estilhaçá-lo, já estão estilhaçando. Entretanto, infelizmente, antes de desaparecer, o império psicótico americano usará, ou tentará usar, a força devastadora de que seu exército é, de qualquer forma, o depositário.

Por isso, e não pelos efeitos do coronavírus, a extinção da civilização humana na Terra é neste momento a perspectiva mais provável. Depois de cinco séculos é difícil não ver: a América era o futuro do mundo, e agora a América é o abismo em que o mundo parece destinado a desaparecer.

De sua clausura parisiense, Alex me escreve esta mensagem: "O coronavírus é a forma de imaginação material com a qual a Terra nos re-interroga sobre o futuro possível de nossa espécie e do planeta inteiro. Quem pensava que a imaginação pertencia apenas ao homem nas formas abstratas de recombinação simbólica estavam muito enganados. Uma pequena mutação material (orgânica? inorgânica? não importa) destrói as grandes construções simbólicas que estavam aniquilando toda forma de vida no planeta. Ele destrói e re-imagina, pois toda recombinação do virtual não pode deixar de demolir e de criar novos espaços de possibilidade. Caosmose..."

O site Psiquiatria Online Luigi D'Elia apoia a tese de que o princípio de reciprocidade está destinado a tomar o lugar do princípio da dívida, desde que - isto não diz, mas me parece implícito - a sociedade não tenha decidido desintegrar-se: todas as dívidas são impagáveis, agora é o momento de aceitá-lo, de apagar da economia o conceito de dívida e de substituí-lo pelo de reciprocidade.

O primeiro-ministro da Etiópia explica isso com absoluta clareza em um artigo no New York Times intitulado "Why the global debt of poor nations must be cancelled" (Por que a dívida global das nações pobres deve ser cancelada). "Reciprocidade" significa interdependência e interconexão. Apenas uma coisa como uma pandemia torna o fio que une a todos observável. O plano evolutivo da nova racionalidade (antimercado) é que agora se torna "conveniente" (no sentido utilitário clássico) colaborar e rever as regras do jogo. Entre as quais a tirania da dívida é a primeira a cair".

Quando eu não posso mais pagar a dívida, minha ruína é a sua ruína. O contágio já demonstrou isso. Os alemães têm alguma dificuldade em aceitar o conceito, mas logo deverão superá-lo.

Se não formos capazes de modificar radicalmente a forma geral da atividade humana, se não formos capazes de sair do modelo de endividamento, salário e consumo, eu diria que a extinção está garantida em duas gerações. Você acha que essa é uma afirmação bastante ousada? Eu também, mas começo a não ver um terceiro caminho entre o comunismo e a extinção.

Também deve ser dito que a extinção em si não é tão ruim de imaginar. A Terra se livra de seu hóspede arrogante e ganancioso, e boa noite.

Mas infelizmente não vai acontecer tudo de uma hora para outra - adormecemos à meia-noite e pela manhã não estamos mais. A extinção é um processo que começou há alguns anos e ocorrerá ao longo do século: massas de pessoas famintas se deslocando desesperadamente para desertos em expansão, guerras de extermínio para controlar fontes de água, incêndios que devastam territórios inteiros e, naturalmente, epidemias virais cada vez mais freqüentes.

Deveríamos compreender que, a partir de agora, o capitalismo será apenas um oceano de horror.

 

4 de Maio

No meio da tarde inflamos as rodas da bicicleta e fizemos um passeio pelo centro da cidade.

Os carros começaram a circular novamente, mas poucos. Garotas de shortinhos e garotos em suas scooters. Todos usam máscaras. Quase todos.

É o dia do recomeço. Uau. Mas para onde ir? A Confindustria pressiona, para os patrões é normal que milhões de pessoas se afundem na doença e na morte, desde que não percam competitividade.

"Me dá medo a idéia de que a distância social se normalize, não poder se abraçar e tocar: esta perspectiva profilática me dá pânico", escreve Alejandra, que fez sua tese de doutorado sobre identidade digital e deveria defender-la. Mas quando e como? Provavelmente em setembro, à distância.

5 de Maio

Trump estava convicto de que seu nome, aquele ridículo monossílabo de sonoridade vulgar, havia garantido a primazia absoluta de todos os tempos na paisagem mediática. Ele também disse em algum lugar, se me lembro bem, que seu nome era o mais citado desde que existe uma esfera pública global. Acho que agora ele está condenado ao fato de que a palavra "coronavírus" lhe roubou essa primazia.

O Corriere della Sera, em seu provincianismo atrasado cinquenta anos, se fia nos intelectuais franceses como se eles ainda existissem. Hoje num breve texto, Houellebecq diz: "Não acredito meio segundo em declarações do tipo 'nada mais será como antes'. Ao contrário, tudo permanecerá exatamente igual. O transcurso desta epidemia é de fato notavelmente normal".

Tudo permanecerá exatamente o mesmo, diz Houellebecq. Que sortudo.

Eu vejo uma espécie de perturbação. A vida social saiu fora das engrenagens formais, e fora das engrenagens psíquicas. A engrenagem do trabalho, a engrenagem da dívida e a engrenagem do salário não funcionam mais. A engrenagem da oferta e da demanda não mantém mais os fluxos de mercadorias juntos, como o petróleo que navega pelos oceanos porque todos os depósitos estão plenos.

O dinheiro, a engrenagem que uma vez uniu todas as engrenagens, é jogado em pacotes aqui e ali desesperadamente, no esforço de fechar o grande buraco, mas perdeu seu charme e a capacidade de mobilizar energia.

Da terra maligna dos pesadelos violetas emerge impensada uma tormenta.

A concreção matérica invisível proliferante corrói as engrenagens; mas seria superficial pensar que o vírus, esse agente biológico que se traduziu em informação e dali transmigrou para a psique humana, seja a causa que explica o mal-estar.

Há muito tempo as engrenagens vêm cedendo. Elas estavam rangendo.

Mas parecia que não havia alternativa. Na verdade, no momento, se confirma que uma alternativa tarda em se manifestar, e não podemos excluir que ela pode nunca tomar uma forma coerente. Mas, enquanto isso, o edifício não está mais de pé.

Em neurogreen, a lista mais exclusiva e charmosa da Infosphere, Rattus comunica que a Rizomatica saiu. Corro para vê-la. Está cheia de idéias. Vá vê-la também.

 

6 de maio

Meu velho amigo Leonardo me convidou para participar de um seminário sobre perspectivas psicopatológicas e psicoterapêuticas abertas (ou fechadas) pelo distanciamento. Eu faço os procedimentos habituais que me introduzem na reunião por Zoom, e encontro um cenário da psicologia que se encontra em uma dúzia de cidades diferentes da América Latina e Europa. A discussão é apaixonante, estimulante, às vezes inquietante. Não são intervenções teóricas, mas trechos de auto-análise, fenomenologia da vivência daqueles que diariamente se encontram com pacientes, em sua maioria virtualmente.

 

A questão central que vejo emergindo dessas histórias é: quais são os tempos, quais serão as modalidades de elaboração do trauma produzido pelo contágio e pelo confinamento?

 

Antes de mais nada, precisamos prever uma espécie de consciência fóbica do contato com o outro. O distanciamento, a angústia de se aproximar da pele do outro - tudo isso age num plano que não é o da vontade consciente, mas o do inconsciente.

 

Subitamente me dou conta do fato de que estamos entrando na terceira época do Inconsciente, e portanto na terceira época da psicanálise.

 

Era uma vez, na paisagem ferrosa da indústria e da família monogâmica, uma patologia ligada à repressão dos impulsos, à remoção do desejo. A época da psicanálise freudiana.

 

Então a esquizoanálise antecipou a quebra da fronteira, o surgimento do esquizo como a figura predominante do panorama coletivo.

 

Na esfera do semicapital o Inconsciente se propaga, o imperativo geral não é mais a repressão, mas a hiperexpressão. Just do it. A explosão reticular do inconsciente produziu a propagação de patologias psicóticas de tipo narcisista, panicistas e, por fim, depressivas.

 

Então, como resultado do ataque do bio-vírus à Psicosfera, passamos da conexão voluntária de décadas da Internet para a conexão obrigatória no distanciamento. Zoom, Instagram, Google nos permitem continuar o fluxo social e informativo, mas somente se renunciarmos ao contato da epiderme, à partilha da respiração. A tecnologia 5G tornará possível uma pervasão integral da vida através da conexão.

 

Na esfera passada da conexão voluntária houve um processo de hiperexcitação e dessensibilização; adiamento do prazer em nome da excitação constante e do desejo sem corpo. Na psicose hiperexpressiva, o desejo era mobilizado contra si mesmo, a imaginação delirante não encontrava o plano da realidade.

 

Mas agora que entramos na esfera da conexão obrigatória e do distanciamento dos corpos, o que se está delineando talvez seja uma sensibilização fóbica ao corpo do outro. Medo de aproximação, terror ao contato. Ou, em uma reversão agora imprevisível a sobrecarga conectiva levará a uma rejeição, o feitiço virtual poderá se romper?

 

O trabalho do trauma não é imediato, ele se realiza no tempo: a sensibilização fóbica se manifestará primeiro, juntamente com a angústia da aproximação dos lábios aos lábios. Podemos prever que após o domínio da neurose freudiana, após o domínio da psicose semi-capitalista, entraremos numa esfera dominada pelo autismo como paralisia da imaginação do outro?

 

Perguntas bastante perturbadoras, mas urgentes, às quais não posso dar uma resposta agora.

 

Estou confuso? Sim, estou um pouco confuso, se podem desculpar-me.

 

7 de Maio

Trump disse que fizemos tudo que podíamos, basta, vamos voltar ao trabalho.

 

A verdade é que o país está em uma expansão imparável de contágio. A Universidade de Washington prevê 134.000 mortes até agosto. Oficialmente, entre 2 e 3.000 por dia, o ritmo deve acelerar até o início de junho. Mas Trump conta algumas histórias, que precisamos "make America great again". Existem 30 mil casos novos de infecção no país a cada dia, e o número está crescendo em muitos estados. Mas Trump tem pressa.

 

Uma criança em cada cinco está passando fome no país líder do Ocidente. Três vezes mais do que em 2008, no início do que parecia ser uma tremenda recessão. Naquela época, havia bancos para salvar, eles os salvaram e destruíram as condições para a sobrevivência da sociedade.

 

8 de maio

Sessenta mil imigrantes, a maioria africanos, depois de atravessarem o deserto, depois de terem sido detidos e violados em campos de concentração líbios construídos por Marco Minniti, depois de terem arriscado afogar-se no Canal da Sicília, chegaram ao sul da Itália e encontraram trabalho nos campos. Dez, doze horas por dia sob o sol por três quatro euros por hora. No verão passado, alguém morreu sob o sol da Apúlia para colher os tomates de merda que os italianos colocavam no espaguete y que poderiam se engasgar.

 

Agora há um problema: que ninguém vai mais colher pêssegos e tomates.

 

Assim, as fazendas pediram para mobilizar esses sessenta mil o mais rápido possível, e o bom ministro da Agricultura se propôs a regularizá-los ou pelo menos dar-lhes uma autorização de residência de seis meses, você vai entender: é para fazê-los trabalhar como escravos, não para ir dançar a tarantella.

 

Ontem houve a decisão no parlamento e no parlamento há um partido de nazistas ignorantes pelo qual eu votei há sete anos (Deus me perdoe) chamado cinco estrelas de merda. Os cinco estrelas de merda estavam muito assustados com a idéia de que os negros pudessem ser regularizados, eles têm medo da anistia. Que os escravos trabalhem e fiquem calados é a sua Moral como moralistas de merda.

 

Agora eles podem ficar tranquilos: o parlamento decidiu que eles terão uma licença, mas apenas por três meses. Justo o tempo para trabalharem dez horas por dia, alguns deles morrerão de ataque cardíaco devido ao calor, receberão dois euros por hora ou talvez três. E os cinco estrelas de merda ficarão contentes: esperando que este país de gente infame se afunde definitivamente na miséria. Questão de esperar alguns meses.

 

8 de maio

Uma página muito interessante no Financial Times. Com o título "Can we both tackle climate change and build a Covid-19 recovery?" (Podemos ambos enfrentar as mudanças climáticas e construir uma recuperação Covid-19?) surge a questão: será possível lidar conjuntamente com os efeitos econômicos do lockdown e reduzir o consumo de combustíveis fósseis para mitigar o aquecimento global?

 

Um artigo de Christina Figueres, do Secretariado da ONU, começa dizendo: "a questão não é se podemos enfrentar simultaneamente a pandemia e as mudanças climáticas, a verdadeira questão é se podemos nos dar ao luxo de não fazê-lo". Muito fraca, a bem-intencionada Figueres fala em crescimento sustentável: "Não podemos passar da frigideira pandêmica para as brasas de uma grande mudança climática... os programas de recuperação devem empurrar a economia global para o crescimento sustentável e uma maior resiliência."

 

O uso repetido da palavra "sustentável" denuncia a fragilidade do raciocínio. Recuperação sustentável, crescimento sustentável, mas como fazer isso?

 

A resposta do malvado Benjamin Zycher, que trabalha para o ultraconservador American Enterprise Institute, soa dolorosamente mais confiável, mais concreta, apesar da evidente falta de interesse pelo destino ao qual os seres humanos estão condenados.

 

"A energia não convencional não é competitiva em custo, senão por que seriam necessários impostos, subsídios e mercados garantidos para torná-la possível? A falta de confiabilidade do vento e do sol, o conteúdo de energia não concentrada nos fluxos de ar e na luz solar, os limites teóricos da conversão do vento e do sol em eletricidade são as razões pelas quais maiores quotas de mercado para as energias renováveis levaram a preços mais altos tanto na Europa quanto nos Estados Unidos... Priorizar a política climática evitará que muitas pessoas melhorem suas condições, especialmente após o terrível choque econômico causado pelo lockdown. Além disso, se os países tiverem uma redução na riqueza, eles terão menos recursos para a proteção ambiental. Não é verdade que os partidários do crescimento odeiam o planeta. É verdade em vez disso, que os ambientalistas odeiam a humanidade.

 

É claro que estou bem ciente de que o American Enterprise Institute é uma associação de criminosos que no passado apoiou as guerras de George Bush, entre outras, e que vive do financiamento de instituições de caridade como a Exxon Corporation e assim por diante.

 

No entanto, as considerações deste canalha são mais convincentes do que as considerações da angelical Figueres. O problema é que as palavras "crescimento sustentável" são oxímoras, com todas as noções fumegantes daqueles que pregam a economia verde para uma suave recuperação do capitalismo.

 

Não há mais possibilidade de crescimento econômico, não há mais possibilidade de aumento do produto global sem extração, destruição, devastação ambiental. Ponto. Se crescimento significa acumulação de capital, competição, expansão do consumo, o crescimento é incompatível com a sobrevivência a longo prazo da humanidade.

 

Por outro lado, o Clube de Roma deixou isso claro há mais de cinqüenta anos, no famoso Relatório sobre os limites do crescimento. "Um planeta finito não pode sustentar um crescimento econômico infinito".

 

Simples, não é?

 

Para a sobrevivência dos humanos, não é necessário um crescimento infinito, é necessária uma distribuição igualitária do que a inteligência técnica e a atividade livre podem produzir. O que também é necessário é uma cultura de frugalidade, que não significa nem pobreza nem renúncia, mas uma mudança de atenção da esfera da acumulação para a esfera do gozo.

 

O capitalismo está sempre mudando, mas em essência não pode mudar. Ele se baseia na exploração ilimitada do trabalho humano, do saber coletivo e dos recursos físicos do planeta. Cumpriu sua função nos últimos quinhentos anos, tornou possível o enorme progresso da modernidade e o horror do colonialismo e da desigualdade.

 

Agora acabou. Ele só pode continuar a existir acelerando a extinção da humanidade, ou pelo menos (na melhor das hipóteses) a extinção do que temos conhecido como civilização humana.

 

Uma pesquisa intitulada Parentalidade nos tempos da Covid19 nos informa que não é esperado um baby boom como resultado do lockdown.

 

Respiro de alívio.

 

A preocupação econômica pelo futuro, e talvez até mesmo algum desconforto em abordá-lo, aconselham os casais a desistirem. "37% dos que planejam um bebê antes da pandemia já desistiram". Como se diz: Há males que vem para o bem.

 

Segundo demógrafos na virada do século, os humanos na Terra deverão ser entre nove e onze bilhões. Com tal cifra não há dúvida de que nesta partida de xadrez vence o jogador com a foice.

 

Mas as pesquisas sugerem que o vírus nos fez recuperar a consciência ao menos um pouquinho.

 

9 de maio

O sol está passando alegremente pela janela entreaberta, e me lembrei da imensa praia de San Augustinillo. Não se podia nadar naquele mar, era tão perigoso que nas proximidades havia uma praia chamada La playa del muerto, porque quem mergulhava lá muitas vezes não voltava para a costa. Não se deve brincar com o Oceano Pacífico. Alugamos uma barraca de madeira em Punta Placer e à noite fomos comer no Nero's, e quando voltamos no escuro caminhamos pela praia e eu disse: Lupita Lupita amor da minha vida.

 

Talvez tenha acabado agora. Ou talvez não.

 

El séptimo sello (ajedrez) Ingmar Bergman 1956

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